AFRO SAMURAI: UM REFÚGIO NA ANIMAÇÃO JAPONESA
Não há novidade nenhuma no fato de que uma grande parcela da população negra e pobre encontra refúgio nas histórias fantásticas da animação japonesa. Texto de: Leandro Soares Revisão de: Victor Aguiar Capa de: André Rebello Esse fenômeno é observável no sucesso meteórico de obras como Dragon Ball ou Naruto e como elas são constantemente referenciadas em músicas que vão de cantores como Frank Ocean a rappers como Yung Buda. Alguns autores condicionam essa demografia de consumo a forma como esses animes oferecem ao telespectador um escape conhecido como "power fantasy", na qual ele se identifica com uma narrativa de um herói que surge das condições mais adversas (narrativa essa que em Dragon Ball ganha contornos raciais, embora o anime mais clássico já tenha sido alvo de diversas críticas em relação a representação de personagens racializados a partir dos esteriótipos de black face propagados pelos Estados Unidos). Carlos Palomboni, professor de musicologia da Universidade Federal de Mibas Gerais com um longo percurso de pesquisa sobre o funk proibidão, acertadamente aponta como o gênero musical e artístico equaciona, em suas primeiras manifestações, a narrativa da vida criminal à narrativa de um herói. Em um FAQ disponível no site proibidao.org, o pesquisador responde as seguintes perguntas de forma bem didática: O proibidão faz apologia ao crime? Não, ele protesta contra a criminalização. O proibidão faz apologia ao criminoso? No papel de herói épico ou trágico, sim. O proibidão faz apologia ao tráfico? Não, ele mostra o resultado da criminalização. O que o “bandido” representa no proibidão? A possibilidade de uma nova ordem jurídica. Qual a causa do proibidão? O terror de Estado. A ideia aqui é a de discutir a possibilidade de uma representação artística da masculinidade negra vinculada ao crime a partir da narrativa da redenção do herói (trágico) ou a transformação social da comunidade em que ele se insere (épico). Esse tipo de concepção não é nova e já era mobilizada por um dos primeiros pensadores panafricanistas no século XIX, Alexander Crummell, sacerdote episcopal que vinculava o “povo negro” ao “povo escolhido” da mitologia judaico-cristã, uma vez que o sofrimento impresso pela escravidão seria aquilo que dignificaria esse povo tal qual o sofrimento experienciado por Jesus. A partir desse conjunto de ideias acredito ser interessante pensar sobre um anime chamado Afro Samurai, um dos poucos protagonizados por um homem negro. A animação é uma colaboração entre o antigo ativista do movimento por direitos civis Samuel L. Jackson e o mangaká Takashi Okazaki, que publicou o material base fortemente inspirado na febre do Soul norte-americano e nas obras cinemáticas de blaxpoitation. A trilha sonora é creditada ao The RZA, líder do grupo musical Wu-Tang Clan, grupo que por sua vez já tinha deixado óbvias suas influências da cultura pop do leste asiático. A colaboração entre pessoas amarelas e pessoas negras não é uma novidade no contexto norte-americano, sendo que a solidariedade entre pessoas racializadas já se mostrava potente na década de 70 com a coalisão entre o partido dos Panteras Negras e o movimento Perigo Amarelo. Aqui, nas periferias do capitalismo, também encontramos essa insurgente solidariedade por meio de pensadoras como Gabriela Shimabuko, autora de “Anti-negritude é global: a participação asiática no racismo anti-negro" e artistas como Jé Hãmãgãy, autora de um desenho largamente reproduzido e reinterpretado apresentando a onça-pintada, a pantera negra e o tigre juntos (metaforicamente a união entre indígenas, negros e amarelos). A história de Afro Samurai começa com Afro (o protagonista) assistindo a morte de seu pai, na época o maior samurai de seu mundo, pelas mãos de uma paródia de cowboy americano chamado Justice (Justiça). No mundo de Afro Samurai há uma regra muito clara: o espadachim dono da primeira posição pode ser desafiado apenas pelo samurai que ocupa a segunda posição, no entanto a segunda posição pode ser desafiada por todos, criando um ambiente de prosperidade e paz para o primeiro colocado e uma vida de terror e carnificina para o segundo. Afro, então, vem a ocupar a segunda posição e a animação se equilibra entre flashbacks que explicam sua trajetória e treinamento para consumar sua vingança contra Justice e o presente, no qual Afro está próximo (ou não) de consumá-la. A partir disso, o anime progride de forma a mostrar como a posição de segundo colocado remove de Afro tudo a nível material, social e psicológico: o personagem perde amigos, sua personalidade se torna cada vez mais fria, seu semblante cada vez mais sofrível. Essa forma tão potente de representação da negritude só foi possível a partir da colaboração entre pessoas racializadas e nesse quesito, gostaria de terminar esse texto com uma frase da própria Gabriela Shimabuko: “a solidariedade antirracista é o maior medo da supremacia branca”. A todos nossos aliados, muito obrigado.