"DOIS ESTRANHOS": A PIOR ABORDAGEM POSSÍVEL SOBRE VIOLÊNCIA POLICIAL E GENOCÍDIO NEGRO
Texto de: João Redmann Arte de: Victor Aguiar Revisão de: Tiele Kawarlevski "Dois Estranhos" é um curta-metragem que divide opiniões. Enquanto uns acham incrível, por mostrar a violência contínua e injusta que o povo preto sofre, outros — e eu me incluo aqui — têm uma visão crítica em relação à obra pelo seu caráter irresponsável. Sob a direção de Trevon Free e Martin Desmond Roe, acompanhamos um dia comum de Carter (Joey Bada$$), que se repete no estilo "Groundhog Day", sempre trazendo um final trágico para ele. As únicas informações que temos sobre o personagem são as de que ele trabalha com design gráfico e deseja ir pra casa ver seu cão, que o espera. Toda vez que ele tenta ir pra casa, não importa o que ele faça ou fale, uma coisa é certa: por ser negro, ele será abordado de forma agressiva por um policial (Andrew Howard). Desde o primeiro frame em que o policial aparece, fica evidente que temos ali um porco racista. "Dois Estranhos" se apoia nos movimentos antirracistas que estouraram nos Estados Unidos por causa da trágica morte de George Floyd. Aqui, os diretores utilizam de situações tristes que jovens periféricos sofrem para… Bom, aqui mora o problema. Voltemos para 2010, o ano em que foi lançado “Doce Vingança”. Dirigido por Steven R. Monroe, “Doce Vingança” é um clássico do pior que o cinema pode nos oferecer. Nele, acompanhamos a história de uma moça que, após ser estuprada, volta para se vingar de cada um dos criminosos que fizeram isso com ela. Você deve pensar: “Que legal, ela se vinga dos filhos da p*ta. Incrível!” Só que não. Temos aqui um filme de um diretor homem que não tem nenhum tato para desenvolver um drama psicológico sobre o que um estupro pode fazer com uma mulher. A meu ver, é muito mais um filme disfarçado de crítica para alimentar fetiches escrotos. Se você não assistiu o filme pode parecer que estou exagerando, mas colocar uma cena de estupro hipersexualizada que dura mais de 20 minutos é nojento. Nesse ponto você deve estar se perguntando, por qual motivo estou falando de "Doce Vingança"? Porque esse filme é o melhor e mais absurdo exemplo de como não lidar com as dores de um coletivo — nesse caso, mulheres. O tema abordado é importante? Com certeza, mas isso não dá carta branca para que ele seja abordado sem o devido cuidado, ainda mais quando o idealizador não faz parte dessa comunidade. Não existe sensibilidade em "Doce Vingança", tampouco em "Dois Estranhos". Os traumas sofridos pelos negros norte-americanos foram transformados em estética, com closes demorados no rosto do ator, enquanto ele diz que não consegue respirar. Em outro momento, uma poça de sangue tem o formato do continente Africano (?). É constrangedor como tudo é sensacionalista, arrogante e caricato ao ponto de banalizar uma pauta tão séria de maneira tão vaidosa. A impressão que fica é de que os autores queriam mais chamar a atenção e ganhar um Oscar, do que de fato desenvolver uma crítica ao racismo. Não devemos retratar um homem negro sendo repetidamente perseguido, baleado e sufocado até a morte, a menos que esse cenário seja usado de forma crítica para sondar o problema. Do jeito que foi feito, é apenas exploração capitalista para lucrar em cima do sofrimento alheio. Um exemplo recente de como abordar racismo com muita inteligência é o roteiro de "Corra!". Podemos ver que Jordan Peele utiliza de uma dialética metafórica, mas ao mesmo tempo muito realista, sem nunca desrespeitar o estômago do espectador e, principalmente, do povo preto. Cada vez mais eu acredito que a esquerda liberal americana está mais próxima do fascismo do que se imagina e isso vale pro Brasil também. Somos rápidos na exportação de péssimas filosofias e de políticas liberais norte-americanas. Precisamos amadurecer e perceber que a elite é o problema. Por isso eu digo: viva Malcolm X, Fred Hampton, Mandela e tantos outros! Busquem conhecer os verdadeiros revolucionários que lutavam, não para que negros se tornassem milionários, mas para que milionários não existam mais. Trevon Free e Martin Desmond Roe conseguiram a atenção e o prêmio que queriam nesse curta que poderia muito bem ser um tweet do Felipe Neto. A partir de agora, espero que ninguém mais use George Floyd e Breonna Taylor como autoindulgência. Eles merecem uma obra muito melhor do que essa cafonice epopeica. Se você acredita que esses dois são incríveis porque colocaram o nome de negros assassinados no final nos créditos do curta ou porque no discurso do Oscar disseram que algumas palavras sobre racismo, então você provavelmente é parte do problema. Pessoalmente, o que me entristece é ver um nome como Joey Bada$$, autor do sensacional All Amerikkka Badass (2017), envolvido em um projeto tão baixo. Para finalizar, indico "Cabeça de Nêgo" do Déo Cardoso, um filme nacional que dá de 10 a 0 em muitos dos filmes norte-americanos, mas infelizmente não damos o devido valor ao nosso cinema e repetimos o senso comum de que “cinema nacional é uma merda”. Pulsante e emocionante, "Cabeça de Nêgo" aborda racismo com um pensamento crítico bem estabelecido. O lançamento está marcado para setembro. Enquanto o filme não é lançado, confira o trailer abaixo: É isso. Não se esqueçam de apoiar o cinema nacional e o SUS, além de beber 3L de água diariamente. Até a próxima! Como a Suspeito funciona? 🕵🏾 A Suspeito é um projeto totalmente independente. Todos os custos de produção, hospedagem do site e afins são tirados de nossos bolsos. 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