Texto por Diego Blanco
O legado de Dorival Caymmi atravessa um ponto fundamental de transformação na cultura brasileira. Anterior aos bossa-novistas, a consolidação de Caymmi como artista enquanto acontecia, alimentava gerações de artistas num futuro real de uma linha do tempo antropofágica.
Artistas como Caetano Veloso, apesar de terem João Gilberto como norte e prévia de um possível futuro, tinham nosso músico de Itapuã como pilar e lugar comum, como casa de saberes e lugar de acolhimento. A arte de Dorival, ao contrário do que é comumente posto quando se trata de outras, carrega sua força justamente em não apontar pro futuro, pelo menos não pro futuro de vanguarda ou de pretensão alguma — nada contra as vanguardas — , mas isso não significa que não apontava pra lugar algum.
Num trajeto de vida que não termina com sua morte, a força conjurada por ele em sua obra era a mesma que o movia, e o impede de morrer. Uma força que aponta pro realismo mágico cotidiano de Salvador que, como apontou o autor cubano Alejo Carpentier, na América Latina é apenas realismo. Numa nação atravessada por sincretismos, pluralidade e força, somente alguém de fora poderia chamar de mágico algo que pra nós sempre foi real. Que pra Dorival Caymmi sempre foi real, e de fato é.
É assim que ele mistura com tanta naturalidade elementos místicos com a dureza do cotidiano imutável, o assovio dos pescadores com as lendas do Abaeté, as mulheres que esperam na areia uma jangada voltar sozinha, enquanto alguns cantam que É Doce Morrer no Mar. E depois de ouvir Caymmi, deixa de ser difícil entender por que seria doce morrer no mar. Por que uma lagoa não é só uma lagoa, e torna-se além de fácil, inevitável abraçar a ideia de que existem coisas maiores que a gente, e que moram no mistério. Dorival Caymmi abraça o mistério.
No seu 108º aniversário, coloco Canções Praieiras, meu disco favorito de Caymmi, pra tocar e agradeço. Agradeço por esse disco, pelas canções mais mágicas que já ouvi na vida. Por um feitiço tão simples, ancestral e poderoso que é completamente hipnotizante.
A energia existente nos 23 minutos de Canções Praieiras é uma das mais bem postas, presentes, fortes e “sentíveis” que já senti. É como se toda vez que alguém entrasse num cômodo desse pra saber se Canções Praieiras foi tocado logo antes. Esse álbum deixa uma marca, abre um espaço, invoca uma força que não tem nem nome ainda, ou que teve há muito tempo.
Tem algo de assustador nesse disco; as histórias, os personagens, os cantos, melodias, parece um conto antigo, uma lenda, os registros de uma entidade mágica. Os relatos de um homem que viveu num tempo em que essas entidades existiam entre nós. Que o mar tinha guardiões, os peixes traziam mensagens e os pescadores viam coisas que nenhum outro humano jamais viu. Itapuã e Jaguaribe ecoavam os sopros salgados que batiam de rosto em rosto de cada alma viva que pisava naquelas praias. É Doce Morrer No Mar.
Quando me perguntam de que data é esse álbum, por mais que seja impressionante o fato de ser de 1954, ao mesmo tempo não é. E eu gosto de fingir que eu não sei. Canções Praieiras não é sobre uma data, não tem validade, e eu gosto de sentir que foi um registro de algo que nunca surgiu nem vai deixar de existir, de algo que sempre esteve. É muita beleza, é quase que uma força da natureza, alheia aos maniqueísmos, à moralidade humana, é a força caótica, visceral, delicada, melancólica, dura e salgada, irrefreável. O mar, a solidão, o amor, a morte, a lagoa escura do Abaeté e os segredos guardados nas profundezas dela.
Canções Praieiras nos aproxima das profundezas abissais dos mistérios da vida, da natureza, da espiritualidade e da feitiçaria interna da humanidade.
É ao construir esse imaginário que Dorival torna-se imortal, e a celebração de sua vida passa a ser a manutenção de uma realidade que existe para além da gente. Os futuros artistas que transformaram a nossa música e nossa cultura tomaram bastante cuidado pra não transformar Dorival Caymmi. Pra não passar por cima de sua força — nem se quisessem — , pelo contrário, a usaram como mastro pra navegar num mar que por mais que se use um outro tipo de bússola, no seu centro tem um altar com seu nome.
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