"O oceano é comumente chamado de “a última fronteira inexplorada” da Terra. A zona abissal, como é chamada aquela localizada abaixo de dois mil metros de profundidade onde nem a luz do Sol chega e abriga diversas criaturas estranhas." Gabriela Santos, Oganpazan.
Texto de: João Redmann
Arte de: Victor Aguiar
Revisão de: Tiele Kawarlevski
No dia 27 de março, o rapper e beatmaker baiano Matheus Coringa lançou seu novo álbum “Loops Abissais”. Ácido, niilista e existencialista, o disco foi produzido por Noshugah, Campoy, iiaancoo e DJ Tadela e conta com as participações de Nabru, Sergio Estranho e El Mandarin.
O fato é que o Matheus Coringa de “Loops Abissais” é mais maduro que o Matheus Coringa de “Nictofilia”. A produção e a estética dos sons é suja, mas elegante e estilosa. Sua forma de comunicar é agressiva, mas intelectualmente instigante.
Em nenhum momento ele abandona sua característica sinceridade irônica; em "Nightvision" ele critica o que ele chama de “rap tilelê”. É impossível não pensar nos casos de agressão e outros abusos relatados pela ex-namorada do Hot da extinta dupla Hot e Oreia.
[Verso 1: Matheus Coringa]
Odeio rap tilelê
Não pago pau pra Caetano
Nós é sujo mesmo filho
Em casa ninguém passa pano
Em outro momento, ele critica artistas do trap que vivem apenas de aparências, deixando a arte em segundo plano em prol da fama. Ele faz um paralelo entre esses artistas e Vanilla Ice, que ficou conhecido nos anos 90 por ter usado samples da música "Under Pressure" do Queen, e sem autorização:
[Verso 2: Matheus Coringa]
Sempre no disfarce
Não ligo pra Vice
E alguns só querem hype
Ser Vanilla Ice
Essa obra é um presente para os fãs do underground. Se você gosta das mentes criativas que compõem essa cena, com certeza vai visitar e revisitar durante muito tempo os sons de “Loops Abissais", que pode ser encontrado em todas as plataformas de streaming.
QUINTO ELEMENTO: Primeiro, Coringa, quero te agradecer, em nome de todo mundo que curte esse tipo de som. Não sei o quão acostumados vocês, artistas do underground, estão com elogios. Independente disso, quero dizer que os trabalhos de vocês mudaram minha vida muitas vezes. Sempre tô revisitando seus sons, do Makalister, Victor Xamã também. Eu só tenho a agradecer.
Matheus Coringa: Satisfação enorme pra mim, mano. A identificação com algo que é tão seleto, que é o underground. Apesar da nossa forma poética de falar sobre algumas coisas não gerar um entretenimento popular, esse é o objetivo mesmo. Não é algo para gerar entretenimento pelo entretenimento, é algo pra gente refletir mesmo. E ver que a galera abraça essas ideias, abraça esse segmento, abraça algumas abordagens linguísticas diferentes das que a gente já está acostumado no rap, é fod* mano, inspira a gente pra c*ralho. É recíproco, toda energia que a gente bota vocês emanam pra gente de volta, e o bagulho vai se mantendo mais forte, mais firme e a gente vai seguindo.
QUINTO ELEMENTO: Falando sobre a cena under do nosso país, você acha que ela pode chegar no “tamanho” da cena under dos Estados Unidos?
Matheus Coringa: Se compararmos a cena under brasileira com a cena under da Alemanha ou Estados Unidos, nós estamos atrasados. Nós ainda achamos que a cena mainstream é a cena dos famosos e o underground a cena dos que não tem reconhecimento. Precisamos entender que a demanda de certos artistas é o underground, é a contracultura, tá ligado? Eu não me rotulo underground por ser anônimo, não mesmo, se um dia eu aumentar minha visibilidade, eu acho que eu vou ficar mais contracultura ainda. Vou usar toda minha influência para trazer mais pessoas para esse segmento que é tão inexplorado no Brasil.
QUINTO ELEMENTO: Existe união entre os artistas do underground?
Matheus Coringa: Existe a vontade e eu sempre propaguei isso. Eu tenho muito respeito pelos meus colegas de trabalho, saca. Mas, se você olhar o certo pelo certo, não é muito não. Os manos que eu trampo junto eu tento manter um laço real. O Victor Xamã, por exemplo, é meu amigo desde novo. O João Alquímico também, estudei com ele lá em Manaus.
QUINTO ELEMENTO: Vi que em seu Twitter você comentou algumas vezes sobre o quão importante o Vandal é para a música brasileira, explique melhor para nós.
Matheus Coringa: Pra mim, o Vandal é o melhor artista do Brasil, Vandal e Victor (Xamã). O Vandal traz aquele bagulho cru, aquela realidade crua, ele tem propriedade pra falar sobre aquilo, você vê que é de verdade. Eu me coloco no underground porque isso me dá certa liberdade poética para falar sobre certos temas, eu transmito algumas ideias progressistas e tal, mas também sei que tem algumas pessoas que passam por certas paradas na pele e tem muito mais propriedade para falar sobre. Esse é o caso do Vandal, ele vive o que ele fala.
QUINTO ELEMENTO: Sem contar a importância do Vandal para gêneros emergentes no Brasil; um exemplo disso é o drill.
Matheus Coringa: Exatamente! Para mim, o Vandal não é underground. Ele é underground pelo corre dele, pela força dele, mas pelo tamanho dele? Ele é um artista popular, mano, ele devia estar entre os maiores artistas da música popular brasileira. Se você for parar pra analisar, o trap tem dedo do Vandal, o grime tem dedo do Vandal, o drill tem dedo do Vandal... Tu pergunta pra cada um dos cabeças desses segmentos e eles vão falar do Vandal. Sou suspeito pra falar dele, curto pra c*ralho.
QUINTO ELEMENTO: Você é um artista de contracultura que impacta muito, mas vamos inverter essa lógica aqui, o que te impacta na arte?
Matheus Coringa: O que me impacta na arte é justamente se ela me faz pensar, mano. E não, não é uma parada intelectual, é uma parada de plena consciência. Nós devemos nos comunicar de maneiras mais profundas, e eu digo isso sendo alguém altamente introspectivo, tá ligado? Eu sinto que cada vez mais perdemos a conexão humana e nos conectamos em coisas já existentes, em moldes de comunicação já existentes. Se a gente não quebrar esse status quo pelo menos pela arte, eu não sei como quebrar de outra forma. Nós vivemos num plano altamente material, tudo é de acordo com o capitalismo selvagem, o pensamento que você precisa disso e daquilo… Quando baseamos tudo nisso, perdemos até o valor da vida. Eu? Eu resisto puramente pela minha arte.
QUINTO ELEMENTO: De onde vem essa sua identificação com o obscuro a ponto de, logo no seu primeiro disco, você transmitir toda essa energia caótica em forma de música?
Matheus Coringa: Quando eu pego um nome como Coringa, atmosfericamente falando, eu preciso ter o contato com o caos e isso é tranquilo pra mim, até porque minha vida foi bem caótica. Eu tive alguns traumas que me fizeram pensar da forma que eu penso. Além disso, eu sempre tive uma visão mais voltada pro darkside, desde criança eu sempre curti tudo que envolvia o macabro e foi daí que saiu o nome do meu primeiro álbum, “Nictofilia”, que significa “aquele que sente conforto na escuridão”. Eu era muito novo, queria mostrar pro mundo que aquilo não me abalava, tanto que as rimas eram debochadas, irônicas e até infantil muitas vezes.
QUINTO ELEMENTO: Qual foi seu processo criativo em “Loops Abissais”?
Matheus Coringa: Eu já tinha o conceito do abissal, já tinha em mente que ia mexer com esse conceito e minha namorada deu a ideia de dar o nome do álbum de “Loops”, mas eu achei que esse nome cabia mais para uma beat tape. Daí o iiancoo, que é bem ligado nessas paradas de kaijus, disse algo com “Mar Abissal” e eu juntei as duas ideias e falei pela primeira vez o que viria a ser o nome do disco, “Loops Abissais”. Lembro que quando eu assisti alguns vídeos sobre o fundo do mar, vi que algumas criaturas no fundo do oceano criam bioluminescência, elas fabricam a própria luz para pegar outras presas. Isso é muito louco. Esses animais conseguem criar luz no lugar mais obscuro da natureza, o mar, que é, em matéria de escuridão, o lugar mais semelhante ao universo. O abissal tem a ver, também, com o mergulho; você precisa mergulhar no próprio ser para entender os sons do disco.
QUINTO ELEMENTO: Para finalizar, que recado você dá para quem deseja se expressar artisticamente de maneira mais profunda?
Matheus Coringa: O que dá profundidade na arte é o experimentar. Se a pessoa não experimenta, ela não vai ter o impacto consigo, muito menos com outros seres humanos. Arte não tem forma, existem várias formas de dialética. Dá pra você ser didático ou fazer umas paradas tipo Lessa, Makalister, Yung Vegan, uma galera que faz um bagulho muito fod*. O acerto tá ali, o erro tá ali, é tudo muito sincero, muito humano.
Esta conversa foi originalmente realizada no podcast Quinto Elemento. A transcrição e adaptação de trechos para este artigo foi autorizada pelo fundador do mesmo. Ouça na íntegra abaixo!
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