Texto por: Vinicius Pires
A tatuagem é uma arte milenar. Por isso, ela se torna um fato social, ela antecede ao nascimento e ao comportamento das pessoas das sociedades contemporâneas. É por anteceder e emergir à nossa contemporaneidade, que a tatuagem configura-se como um “fato exterior” a sociedade. São os olhos humanos que, ao observarem o mundo exterior, buscam absorver em nós sujeitos tudo o que dessa exterioridade nos agradamos e identificamos. Tudo que se absorve reflete como nos vestimos, escutamos, enfim, reflete nos padrões comportamentais da sociedade.
Dentro do contexto urbano, a tatuagem tem o objetivo de promover novas tendências e novos estilos que fogem da padronização habitual do corpo sem tatuagens. É a exterioridade que possibilita a infinidade de temas diversos para riscar no corpo. Cada desenho possui um motivo carregado de simbolismo. Se um desenho não possui significado para os outros que observam, certamente ela possui para quem a carrega. Através da exterioridade, o indivíduo escolhe o desenhos de acordo com àquilo que acredita que se encaixa e identifica.
Podemos compreender que o corpo é moldado pelo contexto cultural no qual o dono desse corpo está inserido. Isso porque cada bolha social se expressa de diferentes formas e costumes com relação aos diferentes corpos e do uso que é feito deles
Na periferia é comum carregar histórias no corpo, seja ela por meio do estilo de se vestir, ou marcado pelas cicatrizes, na corrente do pescoço com pingente do crucifixo e principalmente em tatuagens se carregam uma experiência, seja ela afetiva, de protesto ou sobre a vida no crime.
Os muros e monumentos - pele da obra - recebem pichações, grafites, colagens e outras manifestações comunicativas que reivindicam voz na sociedade, partindo desse princípio a tatuagem é uma forma de protesto revelando os rastros da cultura local e nos muros materializa a memória coletiva, até que sejam encobertas, apagadas ou destruídos por novos textos. A materialidade da tatuagem representa a relação entre a forma e informação, confirmando a função da tatuagem como comunicador enquanto texto cultural. A forma da tattoo, seus traços, a cor e outros características compreende - se como a materialidade da informação.
Trazendo para Fortaleza, conheci um perfil no Instagram que representa muito o que afirmo nos parágrafos anteriores, Siará Tatoo é projeto que documenta tatuagens no estado e tive a oportunidade de trocar uma ideia com Igor de Melo - professor e fotógrafo, iniciou a carreira em 2006 fotografando surf e depois seguiu para outras áreas como evento, fotojornalismo, publicidade e autoral. Já trabalhou para veículos de comunicação nacional e internacional, atualmente é freelancer e tem a fotografia como linha principal de atuação - sobre o impacto de cada imagem no perfil, mesmo que esteticamente não seja bonito, cada traço envelhecido carrega uma narrativa.
"Admiro muito a arte da tatuagem. Inclusive tatuo às vezes. Acho importante ter o registro da história da tatuagem no Ceará e percebi que temos mais registros dos trabalhos feitos em estúdios formais ou trabalhos mais contemporâneo. Sendo que a tatuagem é praticada desde os feitos com castanha até estúdios chiques em bairros nobres"
Perguntado como surgiu a ideia de fotografar as tatuagens, Igor respondeu:
"Eu sempre fui amarradão em Tatuagem, nos anos 90, pivete ainda, frequentava estúdios de tatuagem, não era um estudio profissional, era mais underground. Andava no Dereka, no Saruê. Saruê era uma figura bem undergruound mesmo, tinha uma loja perto da Praça Coração de Jesus (centro de Fortaleza), ainda não era a moda como é atualmente, era uma cultura alternativa. E por mais que eu tenho amigos que tenha estúdio na área nobre que tem um público X, eu sabia que tinha uma cultura de tatuagem rolando fora do circuito, e percebi que havia várias formas de fazer tatuagem, tinha gente que fazia com agulha de costura, com tinta nanquim, fazia de castanha. E um dia eu tava na feira do Mucuripe fotografando o ambiente para uma revista, aí um coroa estava presente no local e vi que ele tinha muitas tatuagens, então resolvi me aproximar pra falar sobre as tatuagens e surgiu a ideia de fotografar"
A documentação dessas tatuagens é muito importante para deixar registrado as histórias que cada traço carrega e por isso Igor de Melo tenta extrair o máximo de informação possível, mesmo que seja só um apelido, já que reconhece que cada indivíduo é documento ambulante.
"Na verdade essas tatuagens desses estúdios, com todo o glamour e filtro no Instagram não me interessam como assunto. Respeito e consumo, mas acho que já são contemplados com exposição nas redes sociais e tudo mais. Gosto dessa obra que vem sendo feita mesmo que não atinja grandes massas, seja com precariedade, enfim. Acho algo mais denso todo o cenário".
"As vezes a galera tem vergonha da tatuagem e a partir do momento que eu falo que sou um estudioso de tatuagem, quero documentar tatuagem, deixa eu fazer uma foto dessa tatuagem, a pessoa muda, parece que aquilo ganha valor, me sinto bem quando a pessoa se sente bem, com orgulho de quem ela é, das escolhas que tenha feito, a gente faz cagada também, tem história ali, nem que seja para achar graça"
Trocando essa experiência com o fotógrafo cearense, ele conta sobre a fotografia mais impactante e recorda sobre a feira do mucuripe onde encontrou um senhor repleto de tatuagens que relatou ter sido feito num presídio naval por um amigo em 1942, num período onde Getúlio Vargas se reunia com seus ministros no Palácio Guanabara, depois de uma hora e meia de reunião, o governo anunciava que o Brasil estava em "estado de beligerância" com a Alemanha Nazista e a Itália Fascista.
"Imagina o que é ser todo tatuado em 1942, esse cara estava nas margens, a gente aquela ideia que marginal é coisa ruim, mas marginal é aquele que tá naquela zona transição, que não tá dentro da norma, eu me identifico com isso, com essa questão de não estar totalmente do fluxo pra onde todo mundo indo, essa pessoa estar escolhendo outro caminho indo pela tangente, pela margem. Esse coroa tatuou as mãos, o peito, o torso todo e isso é muito impactante pra mim.
Principalmente no contexto, se você ver alguém tatuado hoje em dia, é encarado como normal. Em 1942 quem pensava isso, onde não podia sair nem com o violão que era taxado como vagabundo, imagina esse coroa, sinistro".
As pessoas carregam documentos, não falo apenas da identidade ou de qualquer outro tipo de documento físico, mas falo de cada traço que o corpo carrega há histórias, carrega lembranças e experiências.
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