ACHO QUE SANTO NÃO SE METE EM NEGÓCIO DESSE TIPO
Texto e arte de: André Rebello
São 04h40, já bebi provavelmente mais do que deveria hoje e fico feliz que a função de fazer um texto desse filme veio para mim. Não sei se posso chamar de resenha ou análise isso aqui que eu vos escrevo. Sou totalmente leigo tecnicamente quanto a cinema, até trabalho com fotografia, mas honestamente não tenho cacife algum para dar uma análise técnica aqui (fora o fato de ser cansativo e maçante tanto pra mim quanto para vocês ficar 15 minutos lendo um texto cheio de firulas), então chamem do que se sentirem confortáveis.
Já tinha ouvido falar antes sobre O Assalto Ao Trem Pagador graças a sensacional música "Dance, Dance, Dance" do Mano Brown. Dá pra entender exatamente o porquê desse filme ter sido referência de uma das músicas principais em um dos discos de “love songs” mais consagrados nessa terra tupiniquim. Um filme que explora absolutamente todas as emoções possíveis num ser humano, seja fiel ou cagueta o filme em alguma hora te mostra o lado de alguém da maneira mais trágica possível, um jeito até meio Nelson Rodrigues de se contar uma história, ainda mais uma que facilmente poderia ter sido feita como só um besteirol de assalto a trem (coisa que eu achei que era, mas me alegro de ter errado nessa.)
O filme começa com inúmeras cenas de etapas do assalto ao trem, dinamites, garrafas de bebida e cigarros importados, metralhadoras e uma gangue encapuzada, os trilhos estouram e um guarda é crivado a balas, a música pulsa de um jeito absolutamente tenso. Por mais que seja uma cena linda, são apenas os 10 minutos iniciais, porém, o resto do filme inteiro gira em torno desses 10 minutos e desses 27 milhões de cruzeiros roubados pela gangue.
Todos recebem seu dinheiro e assumem um pacto, não gastar 10% da sua parte ou se não “Tião Medonho” iria atrás. Esse posso considerar o protagonista do filme; Tião Medonho. O olhar desse homem é algo próximo a ser acertado por um raio, porém nesse caso tu saberia o motivo do raio te acertar. Tião se coloca sempre como o capitão de todas as situações do filme, o sujeito mais forte e mais esperto de toda gangue.
Enrolei até resolver assistir de vez esse filme, quebrar esse meu vício em procrastinar e finalmente escrever algo sobre, foram uns 3 dias, por hoje umas cervejinhas e uma cachaça aqui do lado, posso falar que me ajudaram a entender o que pra mim é um dos personagens principais desse filme, interpretado pelo Grande Otelo; o Cachaça. Um bêbado, sempre cantando ou dançando, totalmente desengonçado, mas por alguma vontade divina estava metido no assalto pra levar uma bolada pra casa. De começo imaginava que um personagem nesse perfil seria só um alívio cômico da história, mas é justamente o contrário. Cachaça é justamente quem coloca frases pesadas ao longo do filme, seja com ele assumindo que santo algum protegeria marginais ou falando em alto e bom tom: “Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia de cantar... É menos um de se criar nessa miséria!”
Cachaça passa quase uma aura de eremita, um sujeito que já conhece a verdade da sua própria vida, mas que se recusa a viver nos conformes. Sempre bêbado, maltrapilho, um homem que é alheio a qualquer coisa que possa aparecer, já não se sensibiliza emocionalmente com nada, mas demonstra um conhecimento enorme desperdiçado.
Todos os membros da gangue são favelados, menos um; Grilo. Uma tentativa falha de James Dean, vive em seu apartamento e se nega a viver abaixo dos 10% que recebeu, gasta o que pode com sua loiraça, Marta. Carros, ternos, bebidas e qualquer coisa que puder gastar por status. Sua explicação é que o pacto foi apenas aos favelados, esses de fato não podem melhorar de vida sem as suspeitas da polícia. Jamais poderiam andar com um carro esportivo, até mesmo uma caminhonete velha como a de Tião já seria o suficiente para o pessoal crescer o olho. Para Grilo, favelado nasceu para morrer favelado e ele estaria acima disso. E de fato, a polícia simplesmente não se importa com esse fato o filme inteiro. Grilo gasta, gasta e gasta mas nunca é interrogado ou perseguido por isso.
Tião se mostra justamente o inverso de Grilo, o dinheiro todo foi gasto com seus filhos, ajudando moradores, pagando gente que nem mesmo merecia receber algo. Um homem com um senso de justiça extremamente deturpado, mas que se mostra justo em grande parte do filme. Tião faz de tudo para ajudar seus filhos, só quer tirá-los daquela miséria, se mostra apaixonado pela sua esposa, mas mantem outra família e uma vida quase que dupla.
Em uma cena em particular do filme, Tião aparece nas sombras como Ahab, vestindo um casaco negro e uma boina negra, especialmente para cobrar um homem que quer falar demais. Aparece nas sombras e fala somente o que precisa: “Você é o valente que não tem medo de homem, não é? Levanta que eu não mato homem sentado” e procede com a salva de tiros em cima do tio de um dos integrantes da gangue. Fiquei impactado com a cena tanto visualmente quanto pela fala. Para Medonho, existe moralidade até em assassinar um homem, jamais mataria ele sentado. Depois disso vou pegar um café.
O estilo de vida de Grilo chega ao conhecimento do bando, Tião por sua vez decide cumprir sua promessa. A gangue amarra-o e o playboy finalmente mostra sua cara, não implora pela sua vida em momento algum, apenas fala isso:
“Não nasci para viver em favela, não, Tião. Vocês vão me matar é por isso, não é porque eu comprei carro, desrespeitei o pacto não, é porque eu tenho cara de ter carro. Você tem inveja da minha inteligência, inveja de mim, do meu cabelo loiro, do meu olho azul. Você pensava que dinheiro ia fazer você ficar bonito, Tião? Como é que você queria ter mulheres como as minhas, Tião? Você é feio, sujo, fedorento! Não, Tião, seu destino é viver na favela, o seu e de sua família, e dinheiro não vai tirar você de lá não, Tião. Você tem dinheiro e não pode gastar Tião! Tua inveja está é aí, eu tenho cara de ter carro, tenho o olho azul e você, você tem cara de macaco! Macaco!”
Tião finalmente coloca um fim a patética vida de Grilo.
“Vamo jogar ele no rio, pros peixe comer os olhos azul dele.”
Um filme brasileiro de 1962 abordando racismo dessa forma seca, explicita e crítica sem precisar ficar em segundo plano. E eu estava esperando um filme sobre assalto a trens quando dei play.
Não sei se foi o álcool, mas depois desse ponto a história entra em um ritmo aceleradíssimo, as críticas continuam afiadas, mas o filme muda seu passo absurdamente. A polícia carioca finalmente arma seu cerco em cima dos “criminosos”.
Miguel, que recebeu uma grana violenta de Tião mesmo sem ter participado do golpe, o cagueta para os porcos, sem pudor algum e escondendo isso apenas do próprio Tião Medonho. Nunca que ele deixaria isso passar, marcam um encontro, mas obviamente a casa já caiu, os que permaneceram na comunidade foram presos (inclusive Cachaça, que ri). Tião, junto com seu irmão Lino, trocam tiros com as autoridades. Ambos são baleados, mas Tião sobrevive e aproveita sua chance de fuga. Na cadeia um repórter pergunta a Miguel se ele caguetou e ele responde que sim, ri até nas perguntas quanto a Tião e diz que contou mais coisas. Quando as portas da cela se abrem, Miguel dá de cara com Edgar enforcado, o homem que mal tirou proveito de tudo preferiu morrer do jeito mal visto de todos do que ser visto como um rato, os opostos finalmente se encontram.
Medonho foge para a casa de sua amante, deixando sua esposa Zulmira em casa, preocupada, com a responsabilidade do dinheiro escondido e com filhos para criar. A polícia chega a casa dela e a clássica revista policial brasileira é feita. Assim como qualquer revista policial com pobres, é desmoralizante, humilhante e aterrador. Zulmira vê sua casa sendo destrinchada e dissecada em busca do dinheiro, inúmeras vezes é maltratada como de costume. Encontram apenas uma quantia pequena, o dinheiro inteiro estava dentro da porta de um armário velho e permanece ali até o final do filme.
Os porcos finalmente pegam Tião, à beira da morte. O levam para um hospital onde é internado em estado grave, se despede de suas famílias e orienta Zulmira mesmo com o delegado e a imprensa urubuzando na porta de seu quarto. Pede um padre e um pai de santo, coisas que são presentes o filme inteiro. Desde dinheiro dentro de santa até despacho pra falar de presságio de morte.
Depois disso tudo, quando Zulmira finalmente poderia estar com seus filhos em paz, a polícia não se cansa. Mais uma vez sua casa é totalmente depenada em busca do dinheiro, recolhem tudo menos os moveis velhos. Em um momento de cansaço ela explode, pega um pedaço de pau e arrebenta o armário onde o dinheiro inteiro estaria escondido. Fiquei totalmente surpreso com o culhão desse filme, colocar um final onde quem ganha é o real vilão da situação e todos os pontos de Grilo se mostram verdadeiros. A justiça tem realmente braço apenas para alguns, lá eles pintam, bordam, atiram e fazem dos barracos o seu próprio faroeste onde cada policial se sente o xerife humilhando mais um pobre.
Zulmira sai da casa com seus 3 filhos e o filme acaba, com a imagem estática escrita FIM em cima de uma mulher negra, viúva, sem dinheiro algum e com três filhos sem pai para criar.
São quase 7 horas da manhã que encerro aqui. Já bebi mais do que mencionei no começo e preciso dormir, acho que é hora de botar um ponto final nesse texto sem pé nem cabeça sobre um filme absolutamente denso que acabei de assistir, e não teria como colocar melhor do que com o fim do filme. Assistam. O filme não desaponta em nenhum sentido, impecável musicalmente, fotograficamente e todos os “entes” que eu poderia colocar aqui, aborda muito mais do que qualquer coisa que eu apenas arranhei nesse pequeno emaranhado de pensamentos que tive enquanto assistia.
Uma boa noite ou um bom dia, até a próxima.
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