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NOMADLAND E A FALSA LIBERDADE DO MUNDO CAPITALISTA

Atualizado: 11 de jun. de 2021

Uma das coisas que mais amo nesta vida é que não existe adeus definitivo. Conheci centenas de pessoas por aí e elas jamais dizem um adeus final. Eu sempre digo simplesmente "Te vejo pelo caminho".


Texto de: João Redmann

Arte de: Victor Aguiar

Revisão de: Tiele Kawarlevski


Nomadland me tocou muito. Se tornou uma experiência quase “esquizofrênica”, me vi discutindo comigo mesmo sobre o que eu tinha visto em tela. Fazia tempo que eu não via um filme que captasse tanta humanidade em suas personagens, mas, ao mesmo tempo, me incomodou como ele se isenta ideologicamente, muito diferente do livro que deu origem à obra.


O plano de fundo é um Estados Unidos em ruínas e, como de praxe, é a população periférica a mais prejudicada. É o relato de pessoas à deriva, buscando um sentido para suas vidas após perderem suas casas por influência direta da crise financeira de 2008.


A partir disso, muitos norte-americanos descobriram que o ethos american way of life é só um conto de fadas e decidiram viver contra essa ideia capitalista que valoriza o ter mais do que ser. Os nômades são. Apenas.



Fern, a personagem central da história que ganha vida com a atuação de Frances McDormand, é uma viúva de sessenta anos que foi forçada a deixar sua casa em Nevada quando a US Gypsum fechou a cidade-indústria, Empire. Cerca de 95 funcionários e suas respectivas famílias moravam no local.


Ao pegar a estrada, Fern descobre que ela é uma entre tantos idosos que foram obrigados a viver em uma espécie de "nomadismo moderno". O elenco é formado por pessoas reais, como Linda May, Swankie e Bob Wells, que interpretam eles mesmos no filme.


Com uma atuação digna de filmes neorrealistas italianos, McDormand é direta, intensa e econômica. O Oscar errou muito em 2021, mas com certeza não foi na categoria de Melhor Atriz; ela mereceu demais levar essa estatueta.


O filme é baseado no livro de não ficção “Nomadland: Sobrevivendo à América no Século XXI”, de Jessica Bruder, e é um estudo brutal de como a Grande Recessão forçou idosos a deixarem suas casas e comunidades para viver como nômades.


No filme, esse lado crítico é trocado por uma abordagem mais contemplativa. Isso é um problema? Não necessariamente; porém, pode confundir a cabeça dos espectadores menos críticos.



A situação precária em que os personagens do filme se encontram, por exemplo, foi inclusive romantizada pelos apresentadores do Oscar na TV Globo, sob a interpretação de que aquela foi uma escolha das pessoas, e não uma situação derivada dos problemas do capitalismo. Com certeza existem nômades voluntários, mas não é uma unanimidade, como é mostrado no filme.


No começo da obra, a personagem de McDormand consegue um emprego temporário na Amazon e ela é mostrada carregando uma única lixeira leve, sorrindo e acenando para seus colegas que também fazem seu trabalho em um ritmo vagaroso. Isso dificilmente corresponde aos relatos de como é trabalhar na Amazon, inclusive relatos do material fonte do filme.


A Amazon é conhecida por negar aos seus funcionários pausas para ir ao banheiro e pelo grande número de lesões por esforço repetitivo. Os trabalhadores desses centros de distribuição não andam como Fern; eles são forçados a um ritmo intenso de trabalho e, se acharem que está ruim, são despedidos na hora.


Acredito que existam dois tipos de nômades: aqueles que foram forçados a viver essa vida por terem perdido tudo e aqueles que abraçam essa vida por convicção própria.


Fern é a nômade ideal. Ela é forte, saudável, autossuficiente, gosta de trabalhar e anseia pela solidão existencial que apenas a natureza pode fornecer. A odisséia de Fern é tão redentora que a desgraça que acontece na sua vida é retratada como um tipo de “provisão divina" para que ela encontrasse a vida que sempre desejou.



Nomadland foi criado para que fiquemos encantados com a coragem de Fern em, por exemplo, não morar nem na casa de sua irmã de classe média alta e nem na casa de Dave, seu amigo nômade que decide sair das estradas.


A situação de Fern é romantizada, mas faz sentido dentro do que Chloé Zhao quer contar — a história de uma mulher que busca por uma autorrealização que só pode ser encontrada na solidão das estradas.


Essa construção de personagem é perfeita se você deseja construir um filme que não tem o impacto sociológico que poderia ter e, nesse caso específico, não parece ter sido um acidente.


Em diversas entrevistas, os cineastas deram respostas mistas sobre a crítica política do filme. Em setembro de 2020, Zhao disse à Indiewire que queria evitar a política:


“Tentei me concentrar na experiência humana e nas coisas que acho que vão além de declarações políticas — a perda de um ente querido, a busca por um lar.” Chloé Zhao


Não existe tal coisa, Zhao. Quem disse que o cinema não pode tocar em questões políticas ao mesmo tempo que toca em questões universais e humanas? A política é feita por seres humanos, suas necessidades e anseios. Quando Fern decide viver como nômade, essa é uma decisão política.


Infelizmente, Nomadland é mais um daqueles filmes que tratam de um assunto obviamente político, mas que é suavizado pelas pessoas envolvidas no processo de produção porque estas acreditam que o melhor cinema é aquele que não se posiciona ideologicamente.


Esse tipo de produção costuma fazer sempre a mesma coisa: criar uma jornada emocionante, sofrida e bizarramente individualista para seu personagem principal, para que no fim, como um bom livro de autoajuda, você se sinta inspirado a nunca desistir dos seus sonhos… Resumindo, o clichê de sempre.



Dito isso, é inegável a qualidade de Zhao em conduzir um filme tão poderoso. Nomadland aborda tanto os nossos medos mais profundos, quanto o nosso anseio incessante por uma forma de vida alternativa, dada a loucura que é o mundo moderno.


O filme assume a urgência da reflexão. Será que é possível vivermos em um mundo tão cruel? O Brasil já ultrapassou 450 mil mortos por Covid-19, mas quem liga? Agora, em 2021, onze novos bilionários brasileiros foram adicionados à lista da Forbes.


O mundo capitalista é isso mesmo. Nesse sistema, é o consumo que dita o que significa desenvolvimento — basta observar como neoliberais veneram os Estados Unidos por tudo lá ser “mais barato” —, sendo que, ao mesmo tempo, o meio ambiente está sofrendo perdas irreversíveis para manter esse ritmo de produção e consumo.


Essa obra também me fez refletir sobre outra questão: como encontrar beleza ou valor na vida quando você estiver na pior? Essa é uma questão humana muito difícil de responder, porque envolve uma realidade emocional, quase tão importante quanto a realidade material.


Nomadland nos diz que é na natureza que encontraremos liberdade. Ela deixará de ser um local distante para se tornar um lar. Você também estará em contato com uma comunidade mais tolerante e menos opressora do que as que você provavelmente conhece.



E se tudo o que fomos ensinados a valorizar tivesse acabado e não houvesse mais nada para nós, como indivíduos, neste mundo decadente? A maioria de nós seria o tipo de nômade que foi forçado a viver como tal. Ao contrário de Fern, nós passaríamos por muito sofrimento para encontrar redenção na solidão.


De todo modo, talvez devêssemos aprender a ser um pouco mais resilientes, como Fern, pois se há uma maneira de transformar as angústias desse período, marcado por tanta dor, em esperança, energia e até mesmo grandeza de espírito, seria saudável conseguir aproveitá-la.


Não se trata de romantizar o que há de ruim, mas de sobreviver enquanto houver caos, porque a luta sempre continua...

 

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