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A REPRESENTATIVIDADE EM ONE PIECE E O SEU DIÁLOGO COM A REALIDADE



Revisão de: Tiele Kawarlevski


O mundo da obra-prima de Eiichiro Oda


A obra de Eiichiro Oda já era notoriamente conhecida por todo o mundo, mas para alguns foi uma novidade ouvir falar dela mais recentemente. O anime “One Piece”, que vem sendo dublado e lançado oficialmente no Brasil pelo serviço de streaming da Netflix, tem conquistado cada vez mais fãs em nosso País. Assim, vale a pena conhecermos um pouco mais sobre, bem como algumas das questões que o anime aborda.


Como costuma acontecer, o anime segue o mangá; ambos pertencem à mesma autoria e já somam mais de 1.000 exemplares e mais de 1.000 episódios. Antes de falarmos sobre o que dá título a este texto, é importante expor como funciona o universo de One Piece. O enredo acompanha a aventura pirata do carismático Monkey D. Luffy e usa desse espaço para discutir diversas questões que se relacionam com a nossa realidade. Um exemplo disso é o protagonista ser assumidamente um fora da lei e mesmo assim fazer com que simpatizemos com ele e não com a “justiça”, representada por uma marinha violenta e corrupta. Ao longo do seu desenvolvimento, diversas outras questões são abordadas, como sincretismo, escravidão e até questões mais específicas como terras nativas e concentração de capital. O que mais chama atenção, no entanto, é como isso é feito: de forma engraçada. As questões não possuem alívio cômico, o anime em si se organiza por meio do humor e do carisma da tripulação e inicia a partir disso, de modo que as questões não apareçam estereotipadas ou mesmo apenas “para render”; as questões se relacionam com o enredo principal e, como será falado, causam impacto no desenvolvimento dos personagens.


Contextualização e ritmo da obra


Antes de prosseguirmos, vale uma observação: as personagens retratadas aqui são introduzidas no anime pelo termo “okama”, o que seria uma gíria japonesa para se referir a homens gays “afeminados”, não se aprofundando, então, nas formas politicamente corretas ou exatas de se retratar esses personagens, aqui mencionados. Os termos aqui usados estão de acordo com o meu entendimento, respeitando os pronomes com que as personagens se apresentam, ou seja, no feminino. É importante ressaltar que o texto se baseou na minha percepção e vivência como hetéro e cis e, sendo assim, o texto está aberto para contribuições.


Dito isso, uma das questões que o anime se propõe a colocar dentro do enredo é a discussão de gênero. Como mencionado, o tema sempre é introduzido com humor, como, por exemplo, no momento em que Luffy precisa vencer uma luta de boxe e seu companheiro Usopp o instrui a usar uma peruca black power, pois ela possui poderes místicos que aumentariam a força dele; isso é novamente retomado quando o companheiro Brook se junta ao bando: uma caveira, um homem morto com a única coisa que lhe restou, seu imponente black, que ele protege com sua segunda vida. Não seria diferente ao tratar sobre gênero, tudo dentro do universo do anime obedece ao seu humor e ao seu ritmo.



Bon Clay e Ivankov: representações e transfobia


Observei duas abordagens diferentes sobre o assunto, a primeira sobre os personagens em si e como são apresentados e a segunda sobre como os personagens “fixos”, ou seja, a tripulação reage a esses personagens. Para evitar muitos spoilers, separei dois personagens para o texto, que conseguem representar bem o que tenho a dizer. O primeiro se relaciona mais com a percepção do público e dos personagens, falo aqui de Bon Clay ou MR. Segundo, é apresentada ao público ainda na saga Alabasta e é colocada como uma inimiga do chapéu de palha. No entanto, quando encontra pela primeira vez o grupo, prontamente conquista a simpatia de Luffy, Usopp e Chopper e recebe olhares desconfiados de Sanji, que a considera uma espécie de “aberração”. A aparência de Bon Clay pode ser um pouco estranha para o público e, junto com a sua personalidade, faz o espectador pensar se “seria mesmo um personagem gay”; ao menos foi o que aconteceu comigo, pensando que, pelo fato da exibição da saga ter sido feita em 2002, não haveria esse tipo de espaço. Assim, ao passar do tempo, começa a fazer sentido a intenção de Oda. Antes de tudo, Bon Clay se apresenta como uma artista, com golpes baseados em obras e movimentos do ballet, e seus poderes de se “transformar” em qualquer pessoa incorporam um papel metafórico para a não-binaridade. Vale ressaltar que a inspiração de Oda para o personagem foi o ator estadunidense Jim Carrey, notoriamente conhecido por ser um ator de atuação “exagerada”. Desse modo, as habilidades e a personalidade de Bon Clay se dão também por essa relação. Neste primeiro momento de Alabasta, Luffy e Bon Clay só se tornam amigos e aliados com o fim do arco, e o paradeiro da nova aliada de Luffy só será retomado na saga “Impel Down”.



Ao entrarmos em Impel Down, nos deparamos com diversos personagens icônicos que já participaram da aventura do nosso piratinha que estica, além de personagens novos, que é o caso de Emporio Ivankov. Esta última personagem é apresentada já com mais profundidade; ouvimos inicialmente sobre ela com Bon Clay, dizendo que Ivankov era uma lenda entre as “okamas”, o que se confirma na história quando descobrimos que ela, na verdade, comanda um refúgio para os prisioneiros de Impel Down. Considerando que essa parte do anime ainda não foi dublada e que muitos, talvez, ainda não tenham assistido, vou me ater apenas às características de Ivankov. A inspiração para a personagem se deu com o papel de Tim Curry em The Rocky Horror Picture Show, embora não seja um filme de tanta expressão, conta com a exibição de Tim Curry interpretando uma travesti. O personagem serviu não só na inspiração física, mas também na personalidade; Ivankov, assim como a personagem do filme, é uma líder para essas “pessoas estranhas” ao mundo externo. Além de Tim Curry, é sabido que houve a inspiração em um Okama da vida real, Norio Imamura, que serviu como voz para a personagem até ser preso com uma alegação de “postar conteúdo indevido” na internet. Inamura é um entusiasta da arte das tatuagens e postava fotos, em seu site particular, exibindo as suas, orgulhoso, no entanto, o governo japonês o prendeu e o multou, considerando o conteúdo inapropriado.


As habilidades de Emporio, assim como as de Bon, relacionam-se com sua sexualidade e identidade de gênero, possuindo a capacidade de alterar os hormônios de qualquer pessoa e podendo, assim, “dar” a ela o gênero que deseja; isso é feito de forma literal no anime. Para não alongar nos spoilers, ressalto que Ivankov cumpre um papel importante na história, ela é conhecida também por ser a ex-líder do Reino de Kamabakka, na ilha Momoiro, tendo sido presa pelo governo mundial como uma líder revolucionária.



Como mencionado, um outro ponto interessante do anime é a forma como os personagens reagem e lidam com os outros personagens que entram na trama, assim como foi com Bon Clay ao conhecer o grupo e Sanji desdenhar dela. Sanji é o único da tripulação que parece ter algum problema com as okamas, toda sua personalidade é construída dentro de um estereótipo de cavalheiro, com uma visão romantizada das mulheres, e muitas vezes misógino. Oda parece usar o personagem para demonstrar como algumas pessoas reagem à diversidade e, assim, o próprio autor obriga Sanji a lidar com o seu ódio, colocando-o na ilha Momoiro forçadamente, uma ilha conhecida pela liberdade, pelo amor e pelas fortes guerreiras Okamas. Embora, em um primeiro momento com muita rejeição, Sanji pareça não suportar a ilha, nela tem contato com uma nova forma de pensão, onde fica por 2 anos (quando ocorre o timeskip), treinando suas habilidades. Mesmo com o longo período na ilha, Sanji ainda guarda rancor do lugar, o que faz com que muitos fãs questionem a escolha do Oda em usar a ilha como uma “punição” para o comportamento de Sanji. Ao meu ver, a intenção de Oda é a de manter a complexidade do personagem, não o redimindo e sim expondo que talvez ele precise entender o problema nele mesmo, para poder lidar com o mundo que ele ignora e diz odiar.



Desacertos e exageros


Nem tudo são elogios, muitas críticas são feitas sobre as representações em One Piece, como por exemplo na repentina mudança na representação dos corpos femininos (principalmente na personagem Nami), cada vez mais sexualizados ao longo do anime. Embora haja um bom desenvolvimento aprofundado das personagens, fica nítido ao telespectador que essa característica é parte de uma estratégia de “garantir um público-alvo”. Em relação à representatividade LGBTQIA+, as críticas giram em torno da personalidade “exagerada” que Oda coloca. No entanto, quando se verifica as inspirações para esses personagens, como mencionei, Jim Carrey em Bon Clay, Tim Curry em Ivankov e Norio Imamura, isso se torna compreensível. Inclusive, buscando sobre como o público enxerga essas representações LGBTQIA+, observa-se que há uma recepção bastante positiva no geral. Essa representação se faz ainda mais significativa se pensarmos que quando esses personagens são introduzidos, em 2002, quando pouco se debatia sobre questões de gênero e sexualidade na mídia, os próprios concorrentes do anime, que formam o famigerado Big Three, ou seja, Naruto e Bleach, nem ao menos tinham personagens LGBTQIA+, tinham apenas algumas personagens femininas que desempenhavam um papel secundário e que poucas vezes levava relevância e aprofundamento.



Uma representação orgânica


A representação de pessoas LGBTQIA+ na mídia sempre gera debate e, quando ocorre, orienta-se principalmente por estereótipos. Se pensarmos na mídia brasileira, por exemplo, um homem gay tende a ser colocado com um papel cômico, teatral, com bordões ou um jeito de falar bem marcante, ou ainda, se pensarmos nas representações mais famosas sobre a questão, geralmente as histórias são carregadas com uma carga extra de drama que busca evidenciar essa história por meio de muito sofrimento. A representatividade pode, de fato, manifestar-se de diversas formas, no entanto, são poucas as obras contínuas (como séries, novelas ou animes) que buscam um desenvolvimento dessas personagens de forma simples. E isso One Piece consegue fazer de uma forma excepcional e anexada ao enredo. Como mencionado no começo, o anime trata de diversas questões sociais, desde a escravização de povos nativos, a propostas de revolução da ordem “natural” das coisas, e os personagens são atores ativos desses movimentos; assim, a sexualidade e a identidade de gênero são colocadas como uma parte do personagem e não como o personagem em si. Dessa forma, Oda faz com que não se ignore a existência de pessoas LGBTQIA+ em um universo que, mesmo fictício, possui metáforas claras com a realidade. E, assim como na realidade, o mundo de One Piece recebe a diversidade como parte da sua existência. Oda constrói para o público personagens apaixonantes, carismáticos e que se tornam os preferidos de muitos, mesmo quando não são os protagonistas.

 

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