Texto e arte por: André Rebello
A Filadélfia era um barril de pólvora. A tensão racial estava em seu ápice e se mantinha nesse nível havia décadas: um clima de guerra civil pairava pelo ar dessa cidade na Pensilvânia graças aos constantes abusos policiais.
Wesley Cook (posteriormente Mumia Abu-Jamal) já estava envolvido politicamente desde cedo: aos 14 anos havia detido por participar de manifestações; em 68 se tornava um dos fundadores da célula do Partido dos Panteras Negras na Filadélfia; em Oakland, Califórnia, trabalhou brevemente para o jornal dos Panteras Negras e pouco tempo depois se mudou novamente para a Filadélfia, em 1970, ano em que mudaria seu nome legalmente para Mumia Abu-Jamal.
No jornalismo, tanto impresso quanto nas rádios, Abu-Jamal criticava fortemente o departamento de polícia da Filadélfia pelos seus abusos e a péssima administração do prefeito Frank Rizzo, antigo comissário de polícia.
Sempre denunciava a opressão sistemática que ocorria na cidade e principalmente a forma com a qual o departamento de polícia lidava com o MOVE, outra organização de luta pela emancipação negra ativa na Filadélfia. O departamento de polícia da Filadélfia tratava o MOVE como uma organização terrorista. Em operações contra o grupo a polícia já havia “acidentalmente” matado um recém-nascido (na manhã seguinte a cena do crime foi destruída pela polícia com uma retroescavadeira) e em outra ocasião, posterior à prisão de Abu-Jamal, teria ocorrido o covarde e trágico “MOVE Bombings”, quando a sede da organização sofreu um bombardeio aéreo, realizado pelo departamento de polícia. Foram 11 vítimas fatais.
No começo da década de 80, Abu-Jamal era presidente da seção da Filadélfia da Associação de Jornalistas Negros. Suas transmissões eram ouvidas em inúmeras estações de rádio, mas, para a sociedade americana, comentários ativistas vindos de um homem negro, politizado e organizado não eram vistos com bons olhos. Não conseguindo se manter apenas com o jornalismo, Abu-Jamal começou a trabalhar como taxista nas horas vagas para conseguir dinheiro extra.
Nove de dezembro, 1981. Mumia Abu-Jamal sai para trabalhar com seu táxi. Aproximadamente às 03:55 da manhã vê seu irmão mais novo, William Cook na rua discutindo com o policial Daniel Faulkner, após o policial pedir para que William encostasse seu carro. Faulkner chama por reforço e um camburão, mesmo estando William sozinho, e Abu-Jamal encosta seu táxi.
A versão a seguir é a versão aceita pela Justiça americana: William Cook partiu para cima de Daniel Faulkner, tentou tomar sua arma e, nesse ponto, Abu-Jamal teria saído de seu táxi e atirado em Faulkner pelas costas. Faulkner, machucado e no chão, teria atirado de volta em Abu e o ferido. Abu, após ter levado um tiro que perfura seu pulmão e se aloja em seu fígado, teria atirado 4 vezes contra Faulkner, em um tipo de “execução”. Somente uma dessas balas acerta o policial. Abu só sairia da cena para ser levado ao hospital depois de tomar um tiro e ser espancado posteriormente por policiais. As 3 balas que não acertaram Faulkner teriam danificado o chão, mas por algum motivo o chão se demonstrava sem avaria alguma
Os policiais Robert Shoemaker e James Forbes, os primeiros a chegarem na cena, testemunharam que imediatamente encontraram as armas de Abu-Jamal e de Daniel Faulkner. O inspetor Alfonzo Giordano - que no fim dos anos 60 era encarregado das invasões nas sedes do Partido dos Panteras Negras, onde Abu era um membro ativo e das operações contra o MOVE - chega depois e reconhece o jornalista negro baleado no chão. De acordo com seu testemunho Abu confessou o crime após ele perguntar aonde estaria sua arma, Abu teria respondido “Eu larguei a arma do lado do carro depois de ter atirado nele”. O mesmo inspetor teria agredido Abu-Jamal na cabeça com um rádio policial e proferido insultos racistas. A história já começa a mostrar sua verdadeira versão.
Cynthia White, uma prostituta, é testemunha do crime, porém foi levada a delegacia e só foi liberada após inúmeras atualizações de testemunho, cada vez mais diferentes as versões e cada vez mais apontavam para Abu.
O motorista de táxi Robert Chobert também testemunha e conta que seu táxi estava estacionado exatamente atrás da viatura de Faulkner. Graças às fotografias de Pedro Polakoff, temos provas do que de fato não aconteceu e conseguimos ver o descuido proposital na cena, com o intuito de prejudicar qualquer perícia posterior.
O táxi de Chobert não estava atrás da viatura de Faulkner, o carro mais próximo era o fusca do irmão de Abu-Jamal, William Cook. Chobert estava dirigindo ilegalmente aquela noite e estava em liberdade condicional.
Há fotos do policial Forbes segurando as duas armas na sua mão propositalmente sem luvas, deixando inúmeras impressões digitais.
A polícia reportou que não foram encontradas impressões digitais em ambas as armas e a perícia se negou a examinar as mãos de Mumia Abu-Jamal para investigar qualquer resíduo de pólvora. Contrário ao procedimento padrão, o policial Forbes falhou em entregar as armas imediatamente a perícia. As armas não foram entregues por mais duas horas.
A perícia também relatou falsamente que a bala que teria atingido Faulkner na cabeça estava destruída e deteriorada demais para realizarem qualquer comparação com as da arma de Abu-Jamal. Mais tarde foi usada pela promotoria como “prova”. Posteriormente William Chobert admitiria que deu seu testemunho para Alfonzo Giordano em troca de uma ajuda com sua liberdade condicional. Outras testemunhas relataram que Cynthia White não estava na cena do crime.
A polícia conseguiu outras testemunhas, Michael Scanlan e Albert Magliton. Nenhum dos dois viu o tiroteio, mas Scanlan especificamente relatou que viu um homem de cabelo afro fugindo da cena, não de dreadlocks, como os que Abu-Jamal possuía.
Schobert relatou que mais de uma pessoa fugiu da cena, mas não há registro policial nenhum de perseguição a esses suspeitos. Schobert sofreu ameaças do departamento de polícia após isso.
William Singletary, o dono de um negócio local que estava em uma das esquinas também testemunha e diz que Mumia Abu-Jamal chegou na cena depois que Faulkner já estava morto. Imediatamente após Singletary tentar dar seu testemunho os investigadores ameaçam seu negócio e o ameaçam fisicamente.
William Cook, irmão de Abu-Jamal relata que seu sócio Ken Freeman estava no carro com ele e testemunhou o tiroteio. A polícia o ameaça falando que ele também seria condenado pelo assassinado de Faulkner se testemunhasse no julgamento de seu irmão. Todos os policiais realmente envolvidos no caso estavam sendo investigados elo FBI por corrupção antes mesmo do tiroteio.
Abu-Jamal tentou dar sua versão do ocorrido depois de sua internação no hospital, mas o juiz Albert F. Sabo apenas diria que o policial estava de férias.
O mesmo juiz disse na presença de outro companheiro de profissão e de um reporter “Eu vou ajudá-los a fritar esse crioulo”.
A culpa de Abu-Jamal foi fabricada por uma polícia corrupta, não só sua culpa foi fabricada, mas sua inocência foi escondida. Em 1999, com Abu ainda preso, Arnold Beverly confessou o assassinato de Faulkner para as autoridades. A corte recusou admitir a confissão.
Mumia Abu-Jamal foi condenado a morte pelo juiz Albert F. Sabo no dia 25 de maio de 1983. Permaneceu no corredor da morte até 2001 quando sua pena de morte foi derrubada pelas inconsistências do processo. Em 2006, o estado da Pensilvânia tentou o imputar a pena de morte novamente. Desistiram apenas em 2011; Abu saiu do corredor da morte em 2012.
Mumia está preso até hoje, com 66 anos de idade. Passou 39 anos de sua vida encarcerado injustamente, sem direito ao devido processo legal e com sua defesa cerceada, assim como milhares de outras vítimas do sistema penitenciário e judicial americano. O movimento FREE MUMIA existe desde 99, busca trazer visibilidade ao caso e busca a solução justa do mesmo.
Mumia mostra a real face norte-americana, um país que assassinou e trancafiou Fred Hampton e Huey Newton e inúmeros outros. Por que seria diferente com ele?
Fontes:
I'm From Philly. 30 Years Later, I'm Still Trying To Make Sense Of The MOVE Bombing – Gene Demby
When Philly Cops Killed a Baby and Opened Fire on a Black Liberation Group - Nick Schager
USA: A Life in the Balance - The Case of Mumia Abu-Jamal - Amnesty
Mumia Abu-Jamal – Britannica
Framing of Mumia Abu-Jamal – J. Patrick O’Connor
Murdered by Mumia: Big Lies in the Service of Legal Lynching – Partisan Defense Committee
MANUFACTURING GUILT - A Short Film About Mumia Abu-Jamal's Case – First Run Features
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