Meu pai costumava colocar cantigas do sertão quando eu era bem pequena. Ele e meu avô materno, nascido no interior do Maranhão, costumavam escutar Luiz Gonzaga juntos enquanto tomavam uma. Era comum eles colocarem a tal Mulher Rendeira para tocar e do meu avô sempre falar sobre a força da mulher nordestina. Ele citava sua mãe, maranhense, retirante do sertão. Entre goles de cerveja, contava as histórias que escutava quando criança sobre os homens de Lampião e seus homens.
Texto de: Marinah Nogueira
Arte de: André Rebello
Meu pai costumava colocar cantigas do sertão quando eu era bem pequena. Ele e meu avô materno, nascido no interior do Maranhão, costumavam escutar Luiz Gonzaga juntos enquanto tomavam uma. Era comum eles colocarem a tal Mulher Rendeira para tocar e do meu avô sempre falar sobre a força da mulher nordestina. Ele citava sua mãe, maranhense, retirante do sertão. Entre goles de cerveja, contava as histórias que escutava quando criança sobre os homens de Lampião e seus homens.
Depois de um tempo, descobri quem era essa mulher rendeira que soava nas cantigas populares no grupo dos cangaceiros. Maria Gomes de Oliveira, mais conhecida como Maria Déa (pela sua gente), foi a primeira mulher a formar parte do bando de Virgulino Ferreira da Silva, popularmente conhecido como Lampião. O cangaço foi um fenômeno social de revoltosos que ocorreu por quase todo o sertão nordestino entre o século XVIII e meados do século XX.
As histórias são diversas e, às vezes, se contradizem. Porém, para muitos, o cangaço foi uma resposta à fome e aos graves problemas sociais que o sertanejo sofria na época. A ineficácia do Estado em manter a ordem e aplicar a lei eram motivos de violência de grandes proprietários de terras para com a população mais pobre. Assim, esses rebeldes encontraram na vida de cangaceiro um motivo para o qual lutar e defender. No entanto, para outros, eles eram um bando de foras da lei, violentos que saqueavam e roubavam as cidades pelas quais passavam.
Entre os boatos de heróis e vilões, algo atraiu o olhar de Maria Déa. Nascida em 8 de março de 1911, cresceu numa família muito humilde no meio do sertão baiano, no povoado de Malhada da Caiçara (atualmente no município Paulo Afonso). Seu primeiro casamento foi arranjado pela família, aos 15 anos casou-se com seu primo sapateiro, Zé de Neném. Os relatos são de que Déa era agredida pelo marido alcoólatra que a traía constantemente. Por vingança, ela também começou a trair o marido e ter casos com diversos homens até conhecer Virgulino.
Maria Bonita se apaixonou por Lampião e, em 1929, fugiu com ele para fazer parte do bando de cangaceiros. Foi quando Maria começou a ser chamada de Maria Déa ou Maria do Capitão. No grupo, ela era conhecida por sua beleza e personalidade forte. Segundo Adriana Negreiros, jornalista e escritora, Déa foi uma mulher transgressora e pioneira. Diferente de outras mulheres que fizeram parte do bando, ela entrou porque quis. Fugiu com Lampião sendo casada com outro homem porque não aceitava as traições nem a violência do marido.
Negreiros publicou a obra Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço, em 2018. Em entrevista à BBC Brasil, ela defende a transgressão e o pioneirismo de Maria Bonita em razão a sua personalidade espevitada, corajosa e bem-humorada. Os relatos são de que Maria Bonita não se importava com o que dissessem dela, aliás, não leva a si própria a sério. Porém, não há como nomeá-la de feminista. O contexto, a época e o bando incluíam atitudes machistas e nada empáticas em relação às mulheres.
O escritor Ariano Suassuna atribui à imagem de Maria, a busca pela saída da vida medíocre que ela sentia ter. Ele presume que sua paixão por Lampião veio porque ela o via como um rei. Um homem que a salvaria de um casamento arruinado, de um homem que não dava atenção a ela. Ela viu segurança e notoriedade ao lado dele. Era uma relação de respeito e afetuosa.
O nome “Maria Bonita” ficou conhecido somente após sua morte, 28 de julho de 1938. Ela foi assassinada na Grota de Angicos, em Poço Redondo, Sergipe, morta a tiros e depois decapitada. Há diversas versões sobre a origem do apelido. Uma é de que o nome veio por conta dos repórteres dos jornais do Rio de Janeiro, inspirados no filme Maria Bonita, de 1937 e baseado na obra de Afrânio Peixoto, de 1921. Outra, de que soldados teriam dado tal nome porque ficaram impressionados com sua beleza quando ela foi morta.
Mulher rendeira, Maria Bonita, Maria Déa ou simplesmente Maria. Ela escolheu uma vida de bandoleira ao lado de Virgulino e se tornou uma das grandes demonstrações da imagem da mulher brasileira. Fez-se grande no meio de opressão e violência. Maria sofreu na pele o que toda (ênfase em toda) mulher sofre: a necessidade ser o dobro em tudo para obter respeito. Ela precisou dar tudo de si para poder ser e, mesmo assim, sofrer com o machismo. Ela que mesmo menina, começou no cangaço. Aprendeu a atirar, caçar, fugir, a cozinhar pros cabras e apesar disso, sem saber, resistir a toda violência que permeava dentro do grupo. Maria Bonita lutou pelo o que acreditava, tendo que encarar o machismo tanto da sociedade quanto do seu próprio grupo.
A ela que é tudo que somos. Hoje recordamos a imagem dessa mulher histórica nacional e dedicamos o dia a todas as Marias (e Joões) desse país. Que lutam, resistem e existem fazendo o mesmo, afirmando-se todos os dias. A nós, todas as mulheres brasileiras, força. O dia é nosso e a conquista também!
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