Texto de: Vinícius Fontoura
Arte de: Letícia Muller
Revisão de: Tiele Kawarlevski
O ano era 1978. O Brasil passava por um dos períodos de maior repressão e censura em sua história. A ditadura civil-militar era a forma de governar, sempre usando da violência e da tortura contra seu próprio povo. No meio desse contexto, surge um jornal produzido e com a cara de um grupo marginalizado: Lampião da Esquina, a mídia feita por homossexuais, dava voz para as questões da comunidade, da luta das mulheres, do espaço dos negros e da classe trabalhadora.
O jornal era um “alternativo entre os alternativos”, como coloca o Centro de Comunicação e Memória da UNESP [1]. Na época, tal como ainda é regra em boa parte da imprensa, os homossexuais e travestis eram sempre retratados de forma maldosa e sensacionalista, fossem como assassinos, ladrões ou simples vítimas de crimes. Dessa forma, esse grupo de “11 viados”, como se definiam, decidiu criar um jornal que tratasse das questões de sexualidade e sociedade de uma forma diferente. Tendo inspiração no jornal norte-americano Gay Sunshine, O Lampião da Esquina teve 38 edições (inclusa a edição 0) ao longo de três anos de trabalho dessa, que foi considerada a primeira mídia LGBT+ do Brasil.
O jornal não era bem visto nem mesmo entre os comerciantes, sendo boicotado ou então colocado ‘entre as últimas fileiras’ das bancas. O Lampião da Esquina representava os homossexuais, as lésbicas e travestis de forma diferente da grande mídia. Tratavam de si e da comunidade como seres humanos comuns e políticos, com desafios, gostos, histórias, opinião e luta. Ainda sobre a censura, um dos fundadores do jornal, João Silvério Trevisan, conta em um documentário que "houve um momento em que um grupo paramilitar começou a soltar bomba em bancas e deixava panfletos dizendo: 'enquanto vocês venderem tais jornais, nós vamos atacar vocês'. E lá estava o nome do Lampião" [2].
O documentário ‘Lampião da Esquina’, lançado em 2016 pela diretora Lívia Perez, conta a trajetória do jornal, desde a formação do grupo, suas referências, polêmicas da época e a forma com que traziam notícias e questões sociais. A divisão do jornal era feita em alguns blocos fixos, como “Cartas na Mesa”, que trazia dúvidas e questões apontadas pelos leitores, o “Esquina”, que trazia as informações e notícias de determinado período, e o “Bixórdia”, uma coluna mais livre, que abordava todo tipo de questão de forma mais ácida e bem-humorada.
Apesar da centralidade da questão da sexualidade, o jornal também trazia discussões sobre as populações negra e indígena, e sobre a luta da mulher e de movimentos dos trabalhadores em geral. O trecho abaixo é do artigo “E o negro, é beautiful?”, da edição 14 do jornal, publicada em julho de 1979.
“Um jovem negro brasileiro que pretenda [ter] noções da História africana está impossibilitado de adquiri-las, pois só há livros disponíveis em francês ou inglês. [...] Parece estar acontecendo dentro da comunidade negra a mesma distorção do resto da sociedade brasileira. Setores da classe média esclarecida (minoria) falando pelo operariado e lumpemproletariado (maioria), mas sem maiores contatos com eles. É muito pouco. Esse contato deve ser estabelecido de baixo para cima ou teremos apenas mais um efêmero movimento de classe média - só que desta vez negra.”
A respeito do fim do jornal, em 1981, João Silvério Trevisan conta no documentário que “foi na hora certa, ele cumpriu a sua função. E nós chamamos a atenção da sociedade para a existência de outros temas. Foi uma espécie de meteorito que caiu na imprensa brasileira”.
Todas as edições do jornal podem ser encontradas aqui.
Assista o documentário:
Referências:
[1] UNESP. Lampião da Esquina: um alternativo entre os alternativos. Disponível em: https://www.cedem.unesp.br/#!/noticia/458/lampiao-da-esquina-um-alternativo-entre-os-alternativos
[2] CSBH. Jornal O Lampião da Esquina foi a primeira publicação LGBT no Brasil. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2017/06/12/csbh-o-lampiao-da-esquina-primeira-publicacao-lgbt-do-brasil/
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