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FREESTYLE ARGENTINO: O SONHO DEL PIBE DO TREM

Atualizado: 23 de abr. de 2021


Fotografia de: Lissa Pegoretti


Quando cheguei em Buenos Aires, a minha percepção sobre a cultura era inteiramente atrelada à imagem que me venderam da capital argentina: prédios históricos, forte colonização italiana e culinária invejável. A quebra dessa imagem não tardou muito em vir.


Depois de alguns meses, percebi todos esses aspectos. Mas, quando se vive a cidade, é possível analisar toda sua complexidade. Um certo dia, me deparei com um menino, creio que não chegava a ter nem 12 anos, tirando umas notas de freestyle no trem indo pra região periférica do conurbano em direção a Lomas de Zamora. Ele falava sobre a própria vida, sua família, falta de dinheiro e o amor que tinha por rapear. Não cheguei nele, não quis invadir o horário de trabalho (vi que ganhava alguns trocados com isso). Se escrevo hoje sobre isso, é por conta desse guri. Sua verdade me tocou.

Fotografia de Lissa Pegoretti | instagram @pegorettifotografias

O Rap tem sua origem na Jamaica, nos anos 60. Nasceu como forma de protesto contra a violência sofrida nas favelas de Kingston. Por conta de uma crise econômica, bem no início dos anos 70, muitos jamaicanos migraram para os EUA. A história começa quando esses imigrantes, que foram morar nos chamados guetos, introduziram à cultura estadunidense um dos maiores ritmos musicais do mundo.


Talvez, o cenário argentino seja um pouco diferente, mas ainda se percebe semelhanças significativas, uma vez que algumas villas da capital argentina têm um número considerável de imigrantes. Peruanos, bolivianos e paraguaios formam boa parte da periferia bonaerense*. E são esses mesmos pibes de barrio** que muitas vezes representam a cultura e vão às competições todas as semanas, esperando por seu momento.


*Bonaerense significa que é natural de Buenos Aires

**Guri de vila, vileiro etc


Segundo dados do Spotify, em 2019, o trap, subgênero do rap, foi o ritmo musical mais escutado na Argentina. O rap chegou às terras argentinas no começo dos anos 90, com artistas como Illya Kuryaki & The Valderramas, fazendo uma mescla de rock nacional e hip hop. Porém, foi a partir de 2013/2014 que as batalhas de rap ficaram cada vez mais famosas no país. A influência veio das batallas de gallos do campeonato Red Bull, maior festival de freestyle, desde 2005, de países de fala hispânica. As batalhas de freestyle são o subgênero do Rap mais popular na Argentina, tendo como ponto principal ganhar do(s) oponente(s) com rimas improvisadas.


Encontrei a MkUltra, competição organizada por Memi, que acontece a cada 15 dias em praças e parques da capital portenha. Conta com a presença de diversos participantes numa faixa etária entre 12 e 22 anos (e curiosos de idades variadas). Entre garrafas pets cortadas pela metade, cheias de fernet e coca-cola, fumaça de erva, "tiradas de rimas" e beats de rap, vi a cultura se desentrelaçar diante de mim. Consegui ver o nervosismo e aflição de cada participante antes da competição, improvisando ou rimando, junto de um grupo ou sozinho num canto.

Fotografia de Lissa Pegoretti | instagram @pegorettifotografias

Entre esse emaranhado de vozes, cheiros e beats, conversei com Kobein, 19 anos, criado e nascido no bairro de San Telmo, coração histórico de Buenos Aires. Seu interesse por rap veio da mãe, que sempre escutou o ritmo. A maior influência que tem é do rapper estadunidense Tupac e do argentino Acru. Confessa que seu maior sonho é poder viver da música e conseguir comprar uma casa para sua mãe.

“Para mim, o freestyle é um estilo de vida. Porque eu acordo tirando free, tomo banho tirando free, cozinho tirando free. Quando eu me sinto mal, eu improviso, escrevo. O freestyle te tira dos problemas. Tipo eu começo a improvisar, a escrever e deixo de pensar em todos os problemas que tenho. É tipo uma saída, que não é se drogar, pra poder se isolar do mundo”

Kobein não é exceção. Ele é regra. Muitos jovens de periferia e de classe média vão às batalhas de freestyle como uma saída das drogas, dos problemas e de si. É um modo de ser notado e respeitado. Um sonho a ser conquistado a cada rima que é improvisada, tal qual suas próprias vidas.


Fiquei uma tarde inteira escutando esses meninos. Falavam sobre o que pensam, o que odeiam, o que gostam e quem são. A verdade é que os sentimentos surgem junto à mistura de palavras e fôlego que tomam a todo improviso. E eles improvisam. Não somente nos versos, mas na vida. Falam da fome, da intimidade com a morte, da ressurreição, da desigualdade. Se ofendem, se putean (xingam), se respeitam, não se escondem e se abraçam.

Fotografia de Lissa Pegoretti | instagram @pegorettifotografias

O campeonato nacional de freestyle argentino é o Freestyle Master Series (FMS), competição oriunda da batalha mais famosa do país, El Quinto Escalón. Foi dessa compe (competição) que surgiram os nomes dos rappers mais famosos do país, que se tornaram referências musicais no mundo do rap hispanofalante. São eles: Trueno, Wos, Dtoke, Sony, Klan, Wolf, entre outros mais.


No freestyle argentino, há sempre jurados e são eles os únicos a escolher quem ganha ou não. A não ser que quem seja apontado como vencedor dê de “brinde” ao oponente a batalha; diferentemente das batalhas brasileiras, em que todos que estão acompanhando, votam.


O público feminino é inferior ao masculino. Percebe-se tanto nas “arquibancadas” quanto nas competidoras. No dia que fui, Tamara, 30 anos, que estava na lista da batalha, parecia tranquila. Aliás, faz 10 anos que ela rapea.

“A igualdade é a grande dificuldade. Que te respeitem, que te escutem isso é a dificuldade. No freestyle feminino, esperam outra coisa, não esperam que você seja boa. Chama a atenção só por ser mulher.(...) Me aconteceu de ir a várias competições, de eu cair com um oponente homem e ele me fazer cara feia ou rapear sem vontade. Tudo porque sou mulher.”

Tamara é conhecida como Real Zee One e já viajou a outros lugares do país para competir, mas teve que parar. A constância foi diminuindo por conta do trabalho e da filha que teve aos 23 anos, mas ainda vai às batalhas como hobbie. Ela também confessa que o rap é uma religião e que se alguém quiser procurar para se desafogar emocionalmente, pode contar como apoio.


O freestyle é uma manifestação cultural criada e moldada pela rua e pelas pessoas que a vivem. É liberdade, religião, força e êxtase. Na Argentina, não é diferente. A cada verso que vivi e rima que desfrutei, vi o menino do trem. Talvez, se não fosse por ele, nem teria me interessado pelo tema. Consegui encontrar uma nova admiração e resolvi passá-la adiante. Espero que esse guri, que me improvisou sua verdade, possa encontrar a minha escrita nessa reportagem um dia.


Mais fotos de Lissa Pegoretti:



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