Texto de: Diogo Tabanez e Victor Kuhnen
Arte de: Victor Kuhnen
Revisão de: Maria Helena de Pinho
Em meio ao Saara, no deserto nigerense, em vilas malinesas e campos de refugiados argelinos; em clubes de Bamaco, festas de casamento em Agadèz e calçadas em Niamei, ecoa o som das guitarras do povo tuaregue, etnia semi-nômade que engendrou uma das cenas musicais contemporâneas mais sólidas de África: o tishoumaren, ou assouf. Artistas como Tinariwen, Bombino, Mdou Moctar, Les Filles de Illighadad e Kel Assouf são expoentes destacados deste prolífico cenário cultural, que desde a década passada é presença marcada em festivais na Europa, nas Américas e na África natal dos artistas do gênero. As guitarras melancólicas têm alcançado reconhecimento cada vez maior no âmbito internacional — em grande parte devido ao trabalho da gravadora Sahel Sounds, localizada em Oregon, nos EUA — mas sua origem está localizada em meados do século XX.
O tishoumaren atrai e seduz ouvidos ocidentais por motivos dos mais diversos: funde o som familiar de guitarras elétricas com fuzz exagerado e grooves de contrabaixo de dar inveja a Roger Glover e John Illsley com a sonoridade de seus tradicionais instrumentos de corda e percussão que a nós soam peculiares; mescla as escalas pentatônicas do blues com as escalas pentatônicas do chaâbi e as peculiares marcações de tempo da música saariana. A clássica estrutura de canto em chamado-e-resposta é temperada por guitarras distorcidas e percussão extravagante, e são misteriosas suas lamentações em tamasheq, língua nativa tuaregue, que nos soa ao mesmo tempo rude, como que calejada pela aridez do deserto, e delicada, sutil, musical por si própria. Seus riffs de guitarra soam enigmáticos e ásperos por serem, em sua maioria, tocados em certos tons e escalas particulares da região que se diferenciam dos normalmente encontrados no rock ocidental; e também pelo fato de que, por conta da dificuldade de acesso à energia elétrica estável durante viagens através do Saara, é comum que estes artistas façam uso de amplificadores à bateria, notórios por seu timbre rouco, estridente, quase que lo-fi — enfim, seu ritmo é um amálgama de determinações geopolíticas e elementos culturais dos mais díspares.
Tinariwen, o coletivo que fundou e sintetizou a música tishoumaren como conhecemos.
Dentre diversas influências ocidentais, como Dire Straits, Jimi Hendrix, Prince, Carlos Santana e Led Zeppelin, destaca-se a contribuição de dois artistas malineses para a sua formação: os guitarristas Ali Farka Touré e Boubacar Traoré. Ainda nos anos 70, Farka foi um dos pioneiros na intersecção entre a música tradicional do Mali e o blues, no que é quase que uma repatriação do gênero, visto que este último se origina justamente nos ritmos levados à América pela diáspora africana. Nascido em 1939, na vila de Kanau, ele é considerado o pioneiro do blues do deserto. Foi o primeiro bluesman africano a atingir reconhecimento internacional, colaborando com diversos outros artistas, como o guitarrista e produtor Ry Cooder no seu álbum Talking Timbuktu, em 1994, mesmo ano em que fez seu primeiro concerto nos Estados Unidos. Seu dedilhado hipnótico, que chega a se assemelhar a um transe, tornou-se uma referência sólida para toda a arte da guitarra na região africana e no resto do mundo.
Já Boubacar Traoré, nascido em 1942 em Keyes, também no Mali, teve uma carreira marcada por um longo período de ostracismo. Guitarrista autodidata, era frequentemente referido como “o Elvis Presley malinês” por utilizar a guitarra elétrica em conjunto com os ritmos originários do povo Mandingo. Possuía significativa popularidade nas rádios do país até 1968, quando o governo socialista de Modibo Keita foi deposto num golpe militar. Por ter sido associado à imagem do antigo governo, Traoré se tornou persona non grata nas rádios e na cena musical malinesa até 1987, quando foi redescoberto, sendo levado para tocar na televisão e alçado novamente ao sucesso, desta vez internacional.
Farka, de ascendência étnica parte Songhai e parte Fula, e Traoré, possível descendente do povo Mandingo, por conta de seus estilos próprios, de sua amplitude e de seu pioneirismo, deram os primeiros passos para a constituição do que hoje se conhece como blues do deserto em sua primeira forma. Este gênero, ao passar dos anos, continuou se desenvolvendo também no contexto específico da música do povo semi-nômade dos tuaregues, no que foi a ser eventualmente conhecido como tishoumaren ou assouf, hoje em dia um elemento basilar na paisagem cultural moderna dos nômades do Sahel.
Ali Farka Touré (Foto: Damian Rafferty)
Boubacar Traoré (Foto: reprodução)
Tinariwen, dos campos de refugiados aos palcos mundiais
O ano é 1963. Na cidade de Kidal, no pouco habitado norte do Mali, o pequeno Ibrahim ag Alhabib, de quatro anos de idade, testemunha a execução de seu pai pelas mãos de oficiais do exército malinês. Ele ainda é novo demais para compreender a magnitude dos eventos que se desenrolam ao seu redor, que não obstante influenciarão decisivamente sua vida e carreira artística e política no futuro.
A família de Ibrahim se refugia então na Argélia, onde o jovem tuaregue passará sua infância e adolescência. Lá, ele aprende habilidades manuais ao trabalhar como marceneiro para sustentar sua família, e entra em contato com fitas cassete pirateadas de artistas como Dire Straits, Led Zeppelin, Carlos Santana, Bob Dylan, James Brown, Boney M e Jimi Hendrix, além de musicistas consagrados do noroeste da África, como Rabah Driassa e os já mencionados Ali Farka Touré e Boubacar Traoré. Seus primeiros passos na música se dão ao criar um violão improvisado com materiais reciclados. Algum tempo depois, consegue obter instrumentos profissionais, e, junto com Alhassane ag Touhami e os irmãos Liya e Inteyeden ag Abli, forma uma banda informal que se apresenta principalmente em casamentos.
Em 1980, já em um campo de refugiados na Líbia, o grupo se alista em um dos regimentos tuaregues criados por Muammar al-Gaddafi. Durante o treinamento, onde entrarão em contato com ideias revolucionárias pan-africanistas, conhecem outros musicistas, com os quais finalmente será formada em definitivo a banda Tinariwen - “desertos” ou “lugares vazios” em tamasheq. Em 1990 se inicia a segunda revolta tuaregue no norte do Mali após a independência deste país, que irá também alcançar o Níger e durará até que um cessar-fogo seja assinado em 1991. Inicialmente formado em nome da música em um campo de refugiados na Líbia, o grupo não hesita em pegar em armas em nome da autodeterminação de seu povo e da fundação do sonhado estado nacional tuaregue de Azawad.
O jovem combatente Ibrahim ag Alhabib (Foto: reprodução)
O ano é 2019. A banda, que já há vinte anos tem como rotina turnês internacionais e reconhecimento mundial, está lançando seu oitavo álbum, Amadjar, “O Viajante Estrangeiro”. Gravado durante sessões noturnas em acampamentos no deserto durante uma viagem através da Mauritânia, Amadjar conta com participações e adições posteriores de artistas europeus, australianos e norte-americanos; não obstante, tem seus pés firmemente plantados nas fogueiras noturnas do Sahel, lar dos tuaregues. É também a origem de sonoridades e tradições musicais e poéticas que, nas mãos de Ibrahim ag Alhabib, Alhassane ag Touhami e Abdallah ag Alhousseyni, entre outros membros da banda-coletivo, transformaram-se e deram origem ao som que funde o blues, o hard rock, a música chaâbi, a poesia cantada dos griots africanos, as tradições orais tuaregues e incontáveis outras referências que confluem para a violenta e sofrida região saariana e que há décadas carrega a força e a melancolia deste povo despossuído pelos dissabores do deserto do Saara.
Tinariwen em 2019 (Foto: Marie Planeille)
A trajetória artística do grupo é tão conturbada quanto a história de sua etnia e de sua região no continente africano. Mais que um motor de suas motivações pessoais e profissionais, as marés políticas da África colonial e pós-colonial são um elemento fundante e perene em sua poética; a nostalgia e a melancolia do exílio constante são temas persistentes em suas letras, bem como a violência que atravessa a história de seu povo. Os tuaregues — ou Imuagues, outra forma com a qual se autodenominam - são um povo berbere semi-nômade que habita a região do Sahel, no deserto do Saara, em territórios de diversos países, concentrados majoritariamente no norte do Mali e do Níger. Desde o período colonial, no século XIX, até os dias atuais, sua história é marcada por revoltas contra poderes opressivos. A partir de 1960, período onde ocorre a segunda grande rebelião, desta vez contra o recém-formado governo central do Mali independente, a história dos tuaregues passa a se confundir com a história do coletivo Tinariwen, e consequentemente, do tishoumaren.
ARGÉLIA. Deserto do Saara. Um tuaregue e seu filho acamparam perto de Tamanrasset, 1957 (Foto: George Rodger)
O tishoumaren hoje
Em 2009, o norte americano Christopher Kirkley criou o blog Sahel Sounds, a fim de divulgar gravações encontradas e feitas por ele próprio de artistas e bandas da região. Hoje, tornou-se uma gravadora com extenso catálogo de músicos da região, incluindo diversos artistas de tishoumaren como Mdou Moctar, Les Filles de Illighadad e Etran De L’Aïr. Dentre os diversos títulos lançados pela gravadora, destacam-se, além dos artistas citados, os três volumes da coletânea Music From Saharan Cellphones: em grande parte do continente africano, telefones celulares são o principal meio de veiculação da música que lá é gravada, papel anteriormente cumprido apenas pelas rádios.
Com a popularização dos celulares falsificados e levando em conta tanto a dinâmica do semi-nomadismo tuaregue, que não pressupõe grandes centros urbanos, quanto as condições materiais — que dificultam a possibilidade de lançamentos comerciais de álbuns e amplo acesso a computadores e internet de qualidade, — os celulares se tornam verdadeiras coleções de música, passadas de pessoa a pessoa e levadas de ponta a ponta do Saara. Kirkley assina a curadoria dos três volumes, cujo material é repassado a ele via Bluetooth, cartões de memórias e encontrados em fitas cassetes cedidas por rádios, posteriormente masterizadas e lançadas em vinil e streaming pela Sahel Sounds.
Capa da coletânea Music From Saharan Cellphones, Vol. 1.
Bombino
Omara "Bombino" Moctar é um guitarrista tuaregue de Agadèz, no Níger. Nascido em 1980, foi forçado a fugir para a Argélia e, posteriormente, para a Líbia, durante a rebelião tuaregue de 1990. Nesse período de exílio, aprende a tocar guitarra, influenciado por vídeos de Mark Knopfler e Jimi Hendrix. Ganhou seu apelido quando se juntou à banda do guitarrista tuaregue Haja Bebe, que se tornou seu mentor por um período. Em 1997, Bombino retorna a Agadez, forma sua primeira banda, a Group Bombino, que o levou a notoriedade por conta da coletânea Guitars from Agadez, vol. II. Dez anos depois, em 2007, uma nova rebelião tuaregue toma forma no Níger: as guitarras são proibidas para o povo tuaregue por simbolizar a rebelião e dois de seus companheiros de banda são assassinados, o que o obrigou novamente a partir para o exílio em Burquina Fasso; não é surpresa que os temas da nostalgia, do exílio e do lamento pelo lar perdido sejam constantes em sua música. Reconhecido mundialmente por sua técnica e precisão, Bombino conta com oito álbuns gravados desde 2009 e é tido como um dos melhores guitarristas do mundo por diversos críticos musicais.
Mdou Moctar
No primeiro volume da Music from Saharan Cellphones, de 2011, é apresentada a música Tahoultine, do guitarrista tuaregue Mahamadou Souleymane, conhecido por Mdou Moctar e hoje reconhecido como um dos maiores nomes do tishoumaren contemporâneo. Nascido no Níger, Moctar entrou em contato com a música ainda jovem, ao se deparar com artistas como Tinariwen e Abdallah Oumbadougou. Em Sokoto, gravou sozinho seu primeiro álbum, Anar, de 2008 — que no entanto só foi lançado oficialmente em 2014. Em um estilo muito próprio, utilizando guitarras elétricas com efeitos exagerados, sintetizadores e autotune, toca baladas com influência da música hauçá. A obra fez sucesso nas redes de distribuição de música via bluetooth, o que possibilitou a ida de Moctar para Agadèz, uma das cidades mais tradicionais do povo tuaregue no Níger. A formação atual de sua banda inclui Ahmoudou Madassane, seu colaborador desde 2008, Souleymane Ibrahim, também membro da banda Etran De L'aïr, e o produtor e baixista norte-americano Mikey Coltun — que, mesmo passando longe de ser um tuaregue, incorporou uma rotina seminômade, constantemente viajando dos EUA até o Níger para participar dos ensaios, gravações e turnês. Moctar foi protagonista do primeiro filme de ficção gravado integralmente em tamasheq, Akounak Tedalat Taha Tazoughai (“Chuva Da Cor Azul Com Um Pouco de Vermelho”), baseado parcialmente em sua vida e no filme Purple Rain, de Prince, uma de suas principais referências.
Les Filles de Illighadad
Fatou Seidi Ghali aprendeu sozinha a tocar com o violão do irmão, na pequena vila de Illighadad, no Níger, e, na contramão da concepção tradicional dos papéis de gênero dentro da música tuaregue, se tornou a primeira mulher de sua etnia a tocar guitarra profissionalmente. Formada inicialmente com sua prima, Alamnou Akrouni, a atual formação de sua banda Les Filles de Illighadad conta também seu irmão Abdoulaye Madassanea e Amaria Hamadlher. Sua sonoridade é marcada pela simplicidade na produção e retorno às tradições da música camponesa tuaregue: trocam os sintetizadores e o kit de bateria por corais, palmas, percussões orgânicas e pelo tambor tendé, instrumento onipresente na tradição musical tuaregue. A banda possui três álbuns gravados e produzidos pela produtora Sahel Sounds.
Kel Assouf
Anana Harouna, músico tuaregue do Níger que reside na Bélgica, fundou em 2006 a banda-coletivo Kel Assouf, expressão tamasheq que pode significar tanto “nostalgia” quanto “filhos da eternidade”. Harouna viveu na Líbia durante a rebelião de 1990, período no qual performou com os membros da Tinariwen e encontrou sua identidade musical; na Europa, juntou-se com músicos mauritanos, ganenses, malineses, argelinos e franceses para dar vida ao seu projeto. Sua produção é eclética e diversa, possuindo notórias influências do reggae, do punk e até mesmo do samba brasileiro; seus trabalhos mais recentes possuem uma sonoridade próxima ao hard rock e ao metal, marcada pela presença de riffs pesados e impactantes e guitarras densas e distorcidas. Sua música expressa uma mensagem anti-colonialista e de chamado à resistência — mas também de festividade, gracejo e celebração da vida simples. Conta com três álbuns gravados, Tin Hiname, de 2010, Tikounen, de 2016 e o mais recente, Black Tenere, de 2019.
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