Texto por: Alma
Arte por: Alma
Revisão por: Tiele Kawarlevski
Nos últimos anos, o cinema tem vivido um de seus melhores momentos, isso graças à popularidade dos serviços de streaming que favorecem bastante o acesso a essa arte elitista, fomentando o debate da sua importância e das suas possibilidades enquanto mídia histórica. Tal fenômeno surge como forma de libertação, sobretudo das pessoas marginalizadas.
Tendo se firmado na França no fim do século XIX, com os irmãos Auguste e Louis Lumière, a história do cinema vem desde muito antes, com o advento da fotografia e de todo o fascínio em torno da captura de imagem, dos movimentos e das memórias visuais. Porém, ressalto suas origens bem rudimentares desde Kemet (“Egito Antigo”), onde já era possível ver, por meio dos hieróglifos, indícios do que poderiam ser noções de animação, de captura de movimento, de storytelling.
Amílcar Cabral, um dos grandes líderes africanos na luta pela libertação de seu povo, afirmou: mais do que disputas cruciais entre superpotências. Mais do que a luta de classes nos povos desenvolvidos, as lutas dos povos do terceiro mundo contra o colonialismo e o racismo são o motor da marcha da história da nossa época. Assim, relacionado ao avanço das tecnologias, o constante bombardeio de informações acaba alterando nossas noções estéticas, políticas e nossa forma de ver o mundo. Daí que vem a reflexão: para onde a imagem nos leva? Quais são os signos que elas nos passam na representação da realidade? E o mais importante, qual o grau de manipulação que elas produzem?
Nessa medida, a necessidade de nos conectarmos com outras mídias, além das tradicionais, e irmos atrás das nossas próprias construções ancestrais é uma tentativa de romper com essas semióticas coloniais, ir contra o racismo e a negação de qualquer dimensão histórica de povos não-ocidentais. Desse modo, mostra-se a urgência de promover não só o resgate dessas culturas, mas também a continuação dessas heranças, inclusive o resgate do cinema de África e da diáspora.
Um dos pontos-chave para a compreensão dos cinemas africanos está no mapeamento das questões centrais das sociedades locais que ainda se reconstroem, após anos de explorações e violências. As narrativas cinematográficas ali criadas são diretamente herdeiras dessas questões, como traz Ferid Boughedir: todos os filmes africanos são herdeiros dessas reviravoltas: os cineastas vivenciam essas mudanças de tal modo que escolhem o conflito entre o novo e o antigo quase como único tema de seus filmes. Único, mas que pode ser abordado de diversas maneiras.
Atento-me também aos griots, pois sem eles as grandes epopeias africanas não sobreviveriam aos grandes ataques sofridos. Eles são o ponto central para a superação dos saberes coloniais e a manutenção/refúgio da nossa ancestralidade, assim como também são matéria prima para a construção de uma identidade não só local, mas também continental de África.
Para ele, os filmes de arte são formados pelas sensibilidades africanas, um modo específico de se relacionar com o passado e com a temporalidade. Dentre eles, Diawara destaca os cineastas Sembène e Sissako e diz que conforme os jumentos entram no quadro e se afastam da câmera, percebemos que tudo no plano foi coreografado e dirigido para revelar a inscrição do tempo de um espaço particular. Ele enfatiza como tudo se torna objeto da mise-en-scène, gerando ritmo e arquitetura do tempo no espaço, tudo é incorporado dentro de sua linguagem cinematográfica, o estilo de discurso, as linguagens corporais, as cores, as roupas, os movimentos, um sujeito africano diferente daquele comumente representado pelo cinema mundial.
Já o “La Guilde des Cinéastes” aparece na geração mais jovem dos cineastas, principalmente na década de 1990, e reúne nomes como Téno e Bekelo. É marcado principalmente por uma política cinemática e ritmos de montagem às vezes influenciados pelo Jazz, junto a movimentos disjuntivos ou com estilos mais lineares, com uma assinatura extremamente irônica em repúdio à estética pós-moderna.
Com a subjetividade dos “filmes de arte” e com as sensibilidades diaspóricas da “Guilde”, o Novo Cinema Popular africano se apresenta como a mais amorfa e intrinsecamente africana dos três, que, segundo Diawara: embora eles adotem gêneros familiares, como o romance ou o melodrama, esses filmes tomam novas formas populares, estendendo-se a ingredientes e temperos africanos dentro de gêneros antigos.
Os filmes se apoiam em crenças religiosas, em superstições e no senso comum da vida cotidiana e, por isso, é adotada essa nomenclatura “popular”, pois foram esses os filmes que contribuíram para constituir o início de fato do cinema africano para africanos, mesmo que não tenham sido vistos rapidamente na África ou em salas de cinema.
Porém, para uma africanização cada vez maior do cinema, é necessário levar em conta o trabalho de formação do sujeito e a subjetificação que esse trabalho desempenha. A subjetificação em questão só será cumprida por meio de um retorno à especificidade africana em termos culturais, estéticos e cinematográficos.
Em uma comparação, é possível citar Judith Butler, que faz uso da noção Hegeliana e Nietzschiana do Outro para sua concepção de "assujettissement". Seu argumento diz que é na nossa relação com o Outro que o sujeito está apto a se formar. Diawara busca, nessa relação com o Outro, uma forma de apresentar sua formação do sujeito africano nos termos de uma linguagem africana ou de uma linguagem cinemática africana. Ele evoca o Outro como uma força de vitalidade ancestral, uma retomada a uma condição propriamente africana, o lugar da emergência da força vital do ancestral.
A relação com o Outro, em termos africanos, não é dada somente pelo olhar, mas também pelo que se sente. É algo como uma marca ancestral, uma parte do ser a que pertencemos; afinal, nós também contemos uma parte do Outro em nós. E é daí que surge a concepção de autenticidade: usar do Outro como maneira de estabelecer o sujeito africano, não se ancorando num valor absoluto, mas sim numa fluidez centrada no subjetivo.
Reflexões sobre a produção audiovisual no Brasil
Utilizando dessas heranças cinematográficas africanas, é possível ainda refletir sobre a produção audiovisual brasileira e suas possibilidades.
A desigualdade social no Brasil é extrema. São divisões claras de padrões de vida, que causam, no ideal da classe média ou de pessoas que não vivem a realidade da pobreza, um imaginário completamente deslocado da realidade, o que se transpõe às representações artísticas.
O sertão, as favelas e os subúrbios brasileiros são cercados de misticismo, simbologia e romantismo na arte, suas representações são sempre vistas como o lugar do Outro, o lugar da miséria, dos marginais, do folclore. As produções sobre esse “lugar” são cheias de estereótipos e romanizações.
Temos em Glauber Rocha um dos esforços para essa quebra de estereótipos. Em “Estética da fome”, ele tematiza sobre o “paternalismo do Europeu em relação ao Terceiro Mundo”, falando sobre a “linguagem de lágrimas” e sobre como esse era um discurso político e estético incapaz de expressar a brutalidade da pobreza, transformando-a em folclore e choro conformado.
Pela ética, a questão é: como mostrar o sofrimento, representar os territórios da pobreza, dos deserdados, dos excluídos, sem cair no folclore, no paternalismo ou num humanismo conformista e piegas?
Já pelo lado estético, temos: como criar um novo modo de expressão, compreensão e representação dos fenômenos ligados à pobreza, ao sertão, à favela e a seus personagens e dramas? Como levar esteticamente o espectador a “compreender” e experimentar a radicalidade da fome e dos efeitos da pobreza e da exclusão, dentro ou fora da América Latina?
Para isso, Glauber propôs uma Estética da Violência, uma carga de violência simbólica, insuportável e intolerável, que evocasse o transe e a crise da pobreza e da fome.
Contudo, as favelas – vistas pelo Outro como cartão-postal às avessas, etapa histórica e não superada, do capitalismo e dos pobres – são a “Gotham City” da vida real. Um acúmulo de marginalidade, estranha e longe da metrópole, uma bomba relógio do controle do Estado, ameaçando constantemente “a sociedade e o cidadão de bem”; sempre representada por uma violência exacerbada, violência esta que é quase sempre randômica, desprovida de sentido, um mero espetáculo: é como é representada a favela na produção audiovisual contemporânea.
Em “Cidade de Deus” esse brutalismo é escrachado, influenciado pela estética dos filmes de gangster e as vivências da máfia. É tudo posto ao seu cúmulo. No filme, o respeito e a hierarquia são sempre obtidos por meio da violência e do crime, tudo de forma ágil. A passagem de tempo em 360° e a alteração de cores repentina são reflexos de uma influência direta de Scorsese e do Tarantino, sempre voltados a uma quantidade enorme de violências gráficas e institucionais, rodando como um círculo vicioso sem nenhuma redenção.
Não existe, em “Cidade de Deus”, uma única menção à razão dessas violências, uma culpabilização do Estado em relação a esse genocídio ou um questionamento sobre de onde vem as drogas que o tráfico vende. A narrativa é quase sempre mantida por um fluxo hollywoodiano, uma espécie de turismo nos campos de concentração contemporâneos, chamados de favelas, um clamor eterno por justiça (mas justiça essa que virá por quem? Pela polícia?).
Além disso, é necessário ter conhecimento das nossas histórias. Trago aqui um verso de Big Bllakk na música “Sirenes” com o SD9: Conheço um mano que trocaria o seu Yeezy, numa pedra de crack e ele nem sabe se vive, pentes tão longos que causam vertigem, se a vida é um curta metragem me diz quem dirige o filme, takes de Andrei Tarkovsky .... Pergunto-me quantos de nós conhecemos Tarkovsky, Miyazaki, Bukowski, mas desconhecemos Bezerra da Silva, Djbrill, Alassane. Para Diawara, o sujeito africano está revoltado, mas não faz o duplo movimento de, também, identificar-se com ou o poder desse Outro contra o qual se revolta.
Prego aqui a superação desses valores, a produção da nossa realidade pela mão dos nossos, um olhar da favela pela própria favela, para que sejamos capazes de produzir nossos próprios clichês, em que pretos saudáveis dão churrasco todo domingo na laje ao som de Zeca Pagodinho. Que possamos evocar Carolina Maria de Jesus em vez de Shakespeare. Que possamos nos perguntar como armamentos russos vão parar nas mãos de uma criança na favela se os domínios das fronteiras são do Exército e da Marinha? Ao invés de escolhermos se queremos um tiro na mão ou no pé, urge a necessidade de tomarmos as rédeas das nossas próprias referências, dos nossos próprios ideais e das nossas próprias artes, para que nossas crianças não perpetuem essa herança colonial de negação dos saberes ancestrais e para que nossa cor não siga sendo fetichizada e assassinada por filosofias eurocêntricas e pautadas no embranquecimento da raça.
Nossos ancestrais riem. Com um cachimbo entre os dentes, esperam a hora de reconhecer, mais uma vez, as mães marginalizadas, ao mesmo tempo em que repetem os pecados de seus filhos.
Referências:
MARTINS, Angela; CUNHA, Washington. África em Movimento: A história e o cinema Africano contemporâneo. Mulemba, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9 (2013). Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4982>. Acesso em: 11 mai. 2021.
HARROW, Kenneth W. Cinema africano: perturbando a ordem (cinemática mundial). Rebeca, v. 5, n. 2 (2016) jul/dez 2016. Disponível em: <https://rebeca.socine.org.br/1/article/view/418>. Acesso em: 11 mai. 2021.
BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. ALCEU - v.8 - n.15 - p. 242 a 255 - jul./dez. 2007. Disponível em: <http://revistaalceu-acervo.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Bentes.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2021.
BIGBLLAKK; SD9. Big Bllakk x SD9 - SIRENES (Prod. Pedro Apoema). Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Mezg-Da3AsY&ab_channel=BigBllakk>. Acesso em: 11 mai. 2021.
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