Texto de: Guilherme Fonseca
Arte de: Letícia Muller
Revisão de: Tiele Kawarlevski
Nesta semana (dia 9 de dezembro), Boogie Naipe completou 5 anos e é sem dúvidas um dos álbuns mais disruptivos e marcantes da última década. Assim como em Cores e Valores, de 2014, Brown veio cheio de swing, referências e sagacidade em sua primeira aventura solo, sendo uma ode a todo o universo funk/soul das décadas de 70 e 80.
Raízes, sonoridade e ritmo:
No álbum, Brown brinca com a sonoridade, com nossos ouvidos e nossa percepção. Apesar de parecer diferente ou até mesmo “estranho”, há em todo o álbum as mesmas raízes que vemos em várias produções dos Racionais, que ali bebiam das mesmas fontes, da música negra, do soul e do funk americano. Brown é natural de São Paulo; a maior metrópole da América Latina é uma enorme fonte da rítmica universal da música. Dos grandes clássicos do samba, da MPB, viajamos até o blues e as sinfônicas da Sala São Paulo, passamos pelo forró da Vila Formosa, até chegarmos ao funk da Baixada. Uma realidade que nas décadas de 70 e 80 era dominada por funk e soul.
Icônes como James Brown e Cassiano dividem espaços como referências no álbum. Ao decorrer das 22 faixas viajamos pela mente genial de Brown com o auxílio e a qualidade absurda da banda Boogie Naipe, na sonoridade orgânica dos metais, no balanço perfeito dos instrumentos de percussão. Brown e sua rouquidão combinam tão bem com as harmonias que ditam a levada única do álbum.
Lovesongs, boogies e naipes:
Houve sempre uma certa resistência dos “fãs raiz” do hip-hop brasileiro a todos os rappers que se desviavam da crítica direta ao sistema, do modelo quadradão embalado nos beats mais brabos que são o estilo favorito e também unânime de quem conheceu o Brown dos Racionais. Nunca se imaginaria esse ícone da revolta urbana, do Eu sou 157 e Diário de um detento cantando algo como a faixa Amor Distante. Impensável; inadmissível para muitos. Porém, como bom malandro que é, Brown veio avassalador e diferenciado, nos embalos de Boogie Naipe, cravou hits que dialogam com a malandragem e o romantismo cru, da quebrada.
Primoroso nas ideias, Brown buscou transmitir essa “sensibilidade bruta” que nós, da quebrada, carregamos, oriunda da vida, do ócio e dos B.O. Por meio do álbum, afinal, malandro também ama, pobre também é romântico e a linguagem difícil, chorosa e particular de alguns ritmos como a MPB e o Sertanejo Universitário, que às vezes não traziam nenhum tipo de similaridade e respaldo para o jovem periférico, deixaram um vácuo que Brown preencheu bem, abrindo espaço para vários outros rappers trilharem o mesmo caminho, como Don L, Coruja BC1, Djonga, etc.
Um clássico, para além do sofrimento da quebrada:
Segundo o próprio Brown, foram 2 anos de trabalho em estúdio. Com um show de referências, participações e sonoridade, Boogie Naipe já nasceu um clássico, por uma perspectiva para além da musicalidade e representação estética, esse álbum é quase uma extensão do que não só o Brown, mas também o Racionais falam, a celebração da negritude se transforma num aspecto mais “suave”, por aqui se troca a agressividade do hip-hop, a crítica contundente e anti-sistêmica, pela sutileza e a poesia. A prosa da quebrada e o romantismo lúcido de Brown flutuam entre saídas ácidas e assertivas, dando o espaço ao maloqueiro romântico e sensível, se afastando da caricata ideia da quebrada como sendo pura e simplesmente a revolta.
A favela é sempre retratada de uma forma uniforme, excludente e simplificada: lá tem pobre, tem crime e tem droga. Boogie Naipe é o contratipo a essa ideia desde a raiz. Uma energia viva e apaixonada, cheia de swing e leveza, o bom romântico disputa o mesmo espaço que o cafajeste, num fluxo da dz7, ou no baile da serra, os repiques de uma malandragem mais plural e menos estereotipada se convergem naquilo que Brown quer nos dizer ao decorrer das faixas. A quebrada além do sofrimento é aquilo que canta Brown em Boogie Naipe. Lá você vai encontrar uma musicalidade única, envolvente, com qualidade absurda, dignas de um artista atemporal, sensível e moderno, tudo isso de uma perspectiva completamente nova, guiada pelos olhos e voz de um dos maiores artistas da música brasileira. Pega a visão!
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